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Opinião

Cabo Verde e o fenómeno da violência urbana

Por: Redy Wilson Lima 
Há dez anos, ao publicar “Thugs: vítimas e/ou agentes da violência”, longe de querer romantizar ou defender os jovens membros dos grupos armados, como fui acusado por alguns responsáveis institucionais e académicos, o objetivo de fundo foi pensar a delinquência como resultado da violência estrutural (ou política) e simbólica.  
A tendência em olhar a violência urbana exclusivamente a partir de argumentos sociológicos positivistas, funcionalista e evolucionistas que, embora, vários trabalhos de pesquisa etnográfica têm refutado, eram e ainda são comumente assumidas como indubitáveis em alguns setores académicos e institucionais. Sem querer entrar na discussão sobre a localização epistemológica de onde estas perspetivas tiveram origem, é evidente que ao se falar de violência urbana se está a correr o risco em limitá-la à noção da delinquência e, com isso, contribuir para a estigmatização de determinados bairros, ditos periféricos (de organização informal), diferentes dos outros, tidos como centrais (de organização formal). 
De forma a evitar este equívoco, optei nos trabalhos posteriores utilizar a noção de violências urbanas, no plural, visto não existir uma única violência urbana, mas um conjunto de violências, tanto quanto as suas manifestações. Ao se falar de violência urbana, no singular, se está a enaltecer o termo urbano e, portanto, a remeter para um determinado contexto, a urbanização, como causa da violência. Deste modo, no intuito de se construir um modelo explicativo mais abrangente e aprofundado do fenómeno, torna-se necessário deslocar a noção de violência urbana da relação com a delinquência e tomar como violento o próprio processo de urbanização. Isto é, refletir a violência como parte da reprodução das relações sócio-espaciais marcadas por históricas contradições e desigualdades. 
Isto requer considerar a expansão urbana da Praia, com maior intensidade a partir dos anos de 1960, como resultado do movimento migratório, sobretudo das zonas rurais, devido a situações de seca e fome. Face à quase-ausência de políticas públicas nos períodos colonial e pós-colonial, assim como ao recuo do Estado imposto pelo programa de ajustamento estrutural no período pós-democrático, a população rural viu-se expelida dos seus territórios e obrigada a buscar outras alternativas de sobrevivência. Chegados à capital e impossibilitados de migrarem além-fronteiras, edificaram tradicionalmente as suas moradias nos espaços onde os seus parcos recursos possibilitaram, contribuindo para o alargamento da geografia de pobreza urbana da capital do país. 
Contudo, neste processo de importação de modelos e nos momentos em que o político-institucional se sobrepõe às evidências empíricas, o mais certo é ter dificuldades em compreender que a ideia universalizante proveniente da Escola de Chicago de que a organização social provocada pelo urbanismo moderno produz anomia e, consequentemente, comportamentos delinquentes em áreas urbanas com baixa ou nenhum controlo social não é de todo suficiente, pelo menos por duas razões: a primeira, porque os mesmos fenómenos de delinquência são observados, por vezes em escalas bem mais elevadas, em contextos opostos aos identificados e reproduzidos institucionalmente. Torna-se relevante realçar o fato de que nas ilhas estão ativos também aqueles a que chamo de gangues do narcotráfico, gangues de colarinho branco e gangues institucionais, cujos membros apresentam um perfil bem diferente dos membros dos gangues de rua; a segunda, porque as pesquisas sobre os processos de socialização nos contextos ditos periféricos mostram que ainda existem ali um forte relacionamento comunitário que possibilita a existência de redes informais de controlo social eficazes lideradas por algumas mulheres. 
Por outro lado, ao olhar a realidade urbana através da dicotomia centros/periferias, não obstante os estudos urbanos africanos terem mostrado que a realidade urbana é bem mais complexa, se está a reproduzir social e institucionalmente a ideia de que a violência é um produto das periferias, protagonizados por jovens do sexo masculino de origem rural, transformados na nova classe perigosa. 
No processo, não se contempla o fato de que a introdução no vocabulário institucional do termo incivilidades está a remeter ao não civilizado, que não tem urbanidade, do mato, isto é, o outro di fora, termo que, segundo António Correia e Silva, no contexto santiaguense, mais do que referir a um espaço geográfico, se refere a uma marginalização social. Quando associado ao termo badiu esta categoria ganha novo alento discriminatório e esta população passa a ser percebida como o principal agente da violência e responsáveis pela sua urbanização e posterior exportação para as outras ilhas do arquipélago. 
Tomado como um sintoma de degenerescência, todo um povo com um passado de luta de resistência contra-colonial, escapando apenas os que se enquadram, cada vez mais via circuitos político-partidários, na categoria popular djan branku dja. Mobilizando Michel Wieviorka, é forçoso afirmar que este tipo de representação social do outro acaba por se configurar ela própria como uma forma de violência. 

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