Por: Milton Monteiro*
Se cogitamos possibilidades de ganhos é porque estamos vivendo sufocados por perdas. E, de fato, é isso que tem sido a pandemia: um mar de perdas. A pior delas: vidas humanas. Até o momento que redijo este texto – o que será totalmente diferente daqui a alguns instantes e no dia que você lerá este artigo – o total de pessoas já infectadas pelo novo coronavírus ultrapassou a marca dos 4,7 milhões. Conforme o balanço da Universidade Johns Hopkins, dos 4.727.625 casos confirmados, 315.389 morreram e, infelizmente, mais morrerão. São 188 países afetados, inclusive Cabo Verde, que já conta com três ilhas atingidas, 328 casos e três mortes.
Se, por um lado, quando se fala em perdas pensamos nas vidas humanas, por outro lado, quando se fala em ganhos, logo pensamos em valores monetários. E quanto a isso, nenhuma economia deixou de ser afetada e nenhum país conseguiu mensurar completamente as perdas, ou seja, elas são incalculáveis. Daí que pode até parecer difícil responder a pergunta: em meio a tantas perdas, o que Cabo Verde pode ganhar com a pandemia?
Primeiro, é-nos mister deixar de lado as lentes capitalistas por um momento para poder enxergar algumas linhas tortas se desenharem em certas e buscar extrair os ganhos. Não que Deus nos mandou a pandemia ou que cremos na penitência, mas é da natureza da realidade que a tempestade vire bonança, como bem lembrou o nosso poeta maior no poema “regresso”.
Portanto, a concepção apenas material do ganho, muito parecida com a falsa teologia da prosperidade, de que a benção parece resumir a grana, é-nos desprovido de valor, “pois, [por exemplo] que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” Economicamente falando, salvo setores e empresários que beneficiaram com a pandemia, o Covid-19 arrasou mercados e continuará a fazê-lo por mais algum tempo. Sendo assim, até recuperamos e enquanto enfrentarmos cada perda, que busquemos ganhos intangíveis e nas pequenos coisas. Ou será que é só da economia que queremos construir o país? E, já não estamos também carecas de ouvir que “a vida é feita de pequenas coisas’’?
Então, se a vida é um ganho e, como diz Ellen G. White, ‘’é a negligencia das coisas pequenas, as ninharias, que envenenam a felicidade da vida’’, que contabilizemos como ganho toda a onda de solidariedade que tem contagiado o mundo e as nossas ilhas, salvando e melhorando vidas. É como se em meio a um mundo que desaba gradualmente e nos faz desacreditar no “outro”, até pelo seu olhar mal-intencionado, tivéssemos a oportunidade impar de resgatar, mesmo que por um momento, aquela parcela do sentido existencial contido no “outro”.
Pois bem, estamos falando de ganhos tão importantes que até o “duelo romântico-partidário” presente cronicamente na política cabo-verdiana foi infectado, pois “as más [e vãs] conversações [que] corrompem os bons costumes” (Cit. I Cor. 15:33) abandonaram, com ressalvas, a nossa bem-vista Casa parlamentar. Qual cabo-verdiano não considerou um tremendo ganho, por exemplo, a última sessão? Lembrando ku grasa de algumas peripécias, falas e velhos hábitos, poderíamos dizer que a terceira prorrogação do estado de emergencia foi sem bagunça, sem assalto ao parlamento, sem ofensa que faz desmaiar, sem baixarias e malcriações, sem mania de criticar e julgar, sem bipolaridade ou fase depressiva e maníaca, sem culpabilização e atribuição de sucessos e fracos, sem fulanizar a política, sem falar do inferno e do diabo, sem palmas provocativas, sem cortes de energia com intenções outras e sem intervenções e um Parlamento que deprimem o país – o sonho de todos cabo-verdianos!
Segundo expressaram as duas lideranças parlamentares, “o contexto é difícil, exige união de esforços”, “grande exercício de contenção de críticas mesmo em momentos que exigiriam da oposição uma postura bem mais dura”, “juntos, o poder e a oposição, não deixarão de perder esta singular oportunidade de mostrar ao mundo que, embora pequeno em tamanho, são, porém, grandes quando estão diante de desafios nacionais que não excluem ninguém ou partes”. Raras e esperançosas palavras que nos faz pensar e torcer: será que Cabo Verde está sendo infectado por um bom vírus? Pode esta crise ser uma oportunidade para maturação no modo de ser, falar e fazer política em Cabo Verde? Que responda os atores; quanto a nós, cabe parabenizar e torcer para que a oportunidade seja aproveitada.
Cabe salientar que esta não é a primeira oportunidade para fortalecimento de laços de união e da valorização do outro e da diferença. E nem estamos perante o primeiro inimigo, pandemia ou luta. As duas maiores pandemias cabo-verdianas se chamam escravidão e colonização, mas, mesmo assim, os nossos antepassados e combatentes não se intimidaram com a luta, pelo contrário, conseguiram superar as diferenças. Cabral entendia que “para lutar é preciso unidade, mas para ter unidade também é preciso lutar. E isso significa que mesmo entre nós, nós lutamos”. Ou seja, a luta não é só contra o inimigo, “é também em relação a nós mesmos”. Portanto, “unidade para lutarmos” e “luta para realizarmos a nossa unidade, para construirmos a nossa terra como deve ser” (Unidade e Luta, pág.78).
A nação cabo-verdiana é projeto de um sonho apartidário e conquista brava, interna e externamente, que nasce com o lema “unidade para luta”! “Todo o resto é a aplicação deste princípio” (idem, pág. 78). Quanto a nós hoje, se não resgatarmos isso, estamos condenados a infectar nossa jovem democracia com vãs vanglórias sectárias, comprometendo sua maturação. Devíamos saber e jamais esquecer que a tática “dividir para reinar” foi um vírus colonial danoso, e por isso devemos extirpá-lo definitivamente da arena política.
O que Cabo Verde pode ganhar com a pandemia? Certamente, a resposta dependerá do que faremos com a crise, mas ganhamos nós uma oportunidade única de aperfeiçoar a nossa unidade para lutar em prol desse sonho real chamado Cabo Verde?
A pandemia, por mais danosa que tenha sido, passará, já a luta não, pois ela “é uma condição normal de todos os seres do mundo. Todos estão na luta, todos lutam” e todos os dias (idem, pág. 75). Então, que travamos qualquer luta com unidade.
Sim, claro: “o fundamento principal da unidade é que para ter unidade é preciso ter coisas diferentes. Se não forem diferentes, não é preciso fazer unidade”, mas “quaisquer que sejam as diferenças que existem, é preciso ser um só, um conjunto, para realizar um objetivo” (idem, pág. 70, 71 e 72).
* Cabo-verdiano radicado no Brasil e professor doutor na Universidade Federal do Tocantins
(Publicado no A NAÇÃO, nº 667, de 11 de Junho de 2020)
