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A importância da política monetária no combate aos efeitos da pandemia de Covid-19

Por: João Serra*

Atualmente, vive-se, praticamente em todo o mundo, uma situação de emergência coletiva em termos de saúde sem paralelo na história recente. A pandemia originada pelo novo coronavírus constitui também um choque económico extremo, que afeta todos os países e segmentos da sociedade. Trata-se de um choque simultâneo da oferta, devido à disrupção de cadeias de produção e canais de distribuição, e da procura, que deverá afetar desproporcionalmente os sectores do turismo e dos transportes, bem como os serviços culturais e de lazer. 

Com efeito, enquanto perdurarem as medidas de confinamento e de contenção, uma grande parte da economia estará a sofrer interrupção e restrição de capacidade produtiva. Em consequência, a atividade económica vem diminuindo consideravelmente em quase todos os países do mundo. A amplitude dessa redução está ainda rodeada de enorme incerteza.

Segundo o FMI, a profundidade da contração da atividade económica global dependerá da evolução de um conjunto de fatores, nomeadamente “se as medidas de contenção se prolongarem, se as economias em desenvolvimento forem mais severamente atingidas, se as condições de financiamento ficarem mais apertadas, ou ainda se a confiança se deteriorar ainda mais em resultado do progressivo encerramento de empresas e do aumento do desemprego” – in World Economic Outlook, publicado a 14 de abril de 2020.

Enquanto uma pequena economia aberta, com escassos recursos e fraca capacidade produtiva, altamente dependente do exterior, Cabo Verde não ficará imune à perspetiva de uma profunda crise económica mundial, em especial dos seus principais parceiros internacionais. A crise terá impacto direto e incalculável na economia cabo-verdiana e, consequentemente, no seu sistema financeiro, com reflexos na vida das famílias, empresas e populações.

União e ação concertada

A atual situação de saúde pública emergencial exige a união e a ação concertada de todos os responsáveis, nacionais e internacionais. Importa, pois, que cada ator assuma o seu papel, de forma decidida e coordenada, com o objetivo comum de reduzir a incerteza, transmitir confiança e atenuar os impactos da pandemia sobre as empresas e trabalhadores.

Antes de mais, importa atacar de forma determinada a pandemia com uma resposta sanitária adequada. Concomitantemente, impõe-se uma atuação tanto sobre a procura como sobre a oferta, por forma a salvaguardar os rendimentos e o potencial produtivo durante a duração da pandemia. Isto para garantir que os empregos ainda estejam disponíveis quando os trabalhadores regressarem do confinamento e se iniciar a recuperação da atividade económica.

 As políticas de saúde e orçamentais devem constituir o cerne da resposta pública a ser dada. Paralelamente, cabe à política monetária desempenhar um papel fundamental, preservando a liquidez no setor financeiro e assegurando condições de financiamento favoráveis, do mesmo modo, para todos os setores da economia – aos particulares, às famílias, às empresas, às instituições de crédito e aos governos.

Todavia, é importante que os responsáveis governamentais compreendam que os estímulos da autoridade monetária serão sempre complementos às intervenções mais profundas do Estado, através de políticas de auxílio de emergência.

Com efeito, a presente situação de crise pandémica cria pressões agudas ao nível dos fluxos financeiros das empresas e dos trabalhadores, ameaçando a sobrevivência das empresas e dos postos de trabalho. As políticas públicas, ainda que não possam evitar esta situação, podem, contudo, assegurar que o abrandamento da atividade económica não seja demasiado prolongado e profundo. 

Papel crítico do sistema financeiro

Como nunca dantes, cabe agora ao sistema financeiro desempenhar um papel crítico, por forma a evitar que dificuldades temporárias de tesouraria das empresas e das famílias se transformem em situações de insolvência, fruto de uma quebra brusca e significativa de receita. Ou seja, compete ao sistema financeiro assegurar a continuidade do financiamento à economia real, numa altura em que, por um lado, as empresas estão a ter dificuldade em satisfazer o pagamento de salários, impostos e contribuições, dívidas a fornecedores e de outros compromissos financeiros contraídos junto de credores, e, por outro lado, muitas famílias estão a ver os seus rendimentos reduzidos.  

A retoma da atividade estará seriamente comprometida, caso as empresas com dificuldades de tesouraria, em especial, não forem objeto de um financiamento a médio prazo que garanta a diluição no tempo do esforço de reembolso e que salvaguarde o fundo de maneio necessário para o respetivo funcionamento.

No entanto, no atual contexto de crise, em que o risco e a incerteza aumentaram significativamente, para continuar a fornecer crédito à economia os bancos necessitam, em primeiro lugar, de ter a garantia de que não lhes faltará liquidez disponibilizada pelos bancos centrais. Em segundo lugar, precisam que se lhes garanta de que não serão penalizados em termos de capital e de que o risco assumido se mantém dentro das suas capacidades. 

Garantias públicas do financiamento à economia

Assim, é fundamental a existência de garantias públicas para a continuação do financiamento à economia. A sua falta pode prejudicar o financiamento da atividade económica tanto pelo aumento de risco como pelo aumento de consumo de capital resultante de incumprimentos que possam ocorrer.

É absolutamente imprescindível que, nestas circunstâncias, o sistema financeiro, e em particular os bancos, mantenham ativas as linhas de crédito, continuem a aprovar novos empréstimos e estejam disponíveis para aceitar moratórias no pagamento de juros e amortização de capital, assim como, para estender os prazos dos créditos concedidos. Para isso, é necessário que seja minimizado o consumo de capital e mitigado o risco de crédito. Tal requer mecanismos públicos de garantia de crédito, nomeadamente através da disponibilização de recursos de caráter promocional às instituições financeiras, ou garantias do orçamento de Estado.

Outrossim, a atual conjuntura, que acreditamos ser provisória, clama por uma intervenção robusta de política monetária para ajudar a combater os efeitos da pandemia, num contexto em que a variância dos riscos se elevou consideravelmente. Por outro, impõe a continuidade das medidas de carácter acomodatícia, com vista a influenciar, com maior profundidade, a atividade creditícia da banca comercial e a economia.

Pacotes de medidas do BCV

Neste âmbito, com o objetivo de atenuar o impacto do novo coronavírus na economia nacional, o Banco de Cabo Verde (BCV) adotou, no dia 22 de março, pp., um amplo e profundo pacote de medidas de estímulo monetário, reduzindo as taxas de juro de referência do Banco Central para níveis praticamente simbólicos. Além disso, criou-se um novo instrumento de cedência de liquidez a longo prazo, denominado Operação Monetária de Financiamento a Longo Prazo, no âmbito das medidas de política monetária não convencionais – quantitative easing, para financiamento à banca, tendo como colateral os títulos de dívida pública detidos por estas instituições de crédito.

Com a disponibilização de liquidez aos bancos a prazos superiores ao overnight, num montante que poderá ascender a 45 milhões de contos (cerca de 23% do PIB), através das suas operações de refinanciamento, à taxa de juro mais baixa alguma vez fixada pelo BCV (0,75%/ano) e pelo prazo que poderá ir até ao máximo permitido na Lei Orgânica desta instituição recentemente alterada (5 anos), permite-se amplificar o estímulo das taxas muito baixas, canalizando-o diretamente para aqueles que mais podem beneficiar do mesmo – as empresas e as famílias.

Esta medida visa, por um lado, a manutenção do fator “confiança” nos mercados, ao sinalizar à banca uma total disposição do Banco Central em ceder fundos em casos de stress ou escassez de liquidez e, por outro lado, a redução das taxas ativas do mercado bancário, tornando mais barato o custo do crédito e contribuindo para a libertação de fundos por parte das empresas e famílias, ao determinar prestações mais reduzidas e, por conseguinte, um aumento do rendimento disponível.

Com o referido pacote de medidas de estímulo monetário, libertou-se também um montante estimado de cerca de 4 milhões de contos em capital bancário adicional, pela via da redução do coeficiente das Disponibilidades Mínimas de Caixa, de 13% para 10%, o qual pode apoiar uma considerável capacidade de concessão de empréstimos por parte das instituições de crédito. Este alívio de capital deverá estar disponível para os bancos absorverem perdas sem provocar nenhuma ação de supervisão e/ou, potencialmente, financiar empréstimos às empresas e famílias que precisem de liquidez extraordinária.

Salienta-se que, não obstante a profundidade e amplitude das medidas de estímulo monetário adotadas, as simulações econométricas efetuadas quanto aos impactos apontam para uma envolvente interna de pressões contidas nos preços no consumidor e na balança de pagamentos, permanecendo as taxas de inflação baixas e os níveis de reservas externas compatíveis com a garantia do regime cambial de peg fixo do escudo face ao euro. 

De realçar que as características do sistema financeiro cabo-verdiano, aliadas ao regime cambial de peg fixo e à própria estrutura económica do país, induzem ao pressuposto de que os canais das taxas de juro e do crédito são os principais canais transmissores dos impactos da política monetária à economia. Contudo, condicionantes estruturais, nomeadamente a incipiência dos mercados interbancário e da dívida pública, aliadas à manutenção do excedente de liquidez bancária, têm constrangido estes mecanismos, impedindo uma transmissão desejada dos efeitos da política monetária ao sector real da economia por via do canal de juros e impondo a necessidade de se criar condições para a melhoria da sua eficácia. 

Neste contexto, o aperfeiçoamento dos mecanismos de transmissão monetária, com destaque para o canal das taxas de juro, tem merecido uma especial atenção por parte da autoridade monetária, tendo havido uma relativa melhoria, traduzida na redução das taxas de juro praticadas pelos bancos comerciais, nos últimos anos, tanto nas operações passivas como nas operações ativas.

Eficácia das medidas de injeção de liquidez

Pode-se, no entanto, questionar a eficácia das medidas de injeção de liquidez no sistema bancário, num contexto de excesso de liquidez bancária. Contudo, é preciso ter presente o contexto em que tais medidas são implementadas, bem como o seu propósito.

Ora, mesmo com liquidez excedentária, os bancos comerciais dificilmente dispensarão “dinheiro barato” disponibilizado pelos bancos centrais, especialmente em tempos de crise. Pois, sabem que se hoje têm excesso de liquidez, num contexto de crise internacional, rapidamente poderão perder as principais fontes de funding – depósitos de clientes nacionais e de emigrantes (estes, em especial, para o caso específico de Cabo Verde) e de liquidez.

Pelo que, o acesso a fontes alternativas de “dinheiro barato” é fundamental, tanto mais que o excesso de liquidez no sistema bancário é segmentado, ou seja, uns possuem mais “excesso” do que outros.

Também não se pode esquecer do fator “confiança” que, nestas circunstâncias, deve ser imprimido no sistema financeiro pelos bancos centrais, como emprestadores de última instância. A janela de financiamento criada pelo BCV desempenhará precisamente esse papel e tem havido uma boa procura pelos recursos que ela proporciona por parte dos bancos comerciais.

É importante, ainda, compreender que o principal propósito das medidas adotadas pelo BCV é estimular a banca comercial a canalizar o “dinheiro avultado e barato” disponibilizado pelo Banco Central para o crédito a particulares e empresas, a taxas reduzidas, impulsionando o consumo, o investimento e a economia, num contexto adverso. Tem sido a prática na maioria dos bancos centrais internacionais, muitos dos quais encontram-se inundados de liquidez há largos anos, como é o caso do Banco Central Europeu.

Com efeito, a experiência demonstra que uma das características da resposta de política monetária durante as grandes crises económicas e financeiras internacionais é a adoção coordenada, por parte dos bancos centrais, de medidas de redução das taxas de juros de referência e injeção massiva de liquidez no sistema bancário, como forma de evitar o colapso económico e social.

Pode-se, efetivamente, questionar a eficácia dessas medidas, mas pensamos ser mais coerente e aceitável o Banco Central assumir uma intervenção determinante no sistema do que pecar pela inércia. Como disse a Sra. Lagarde: “Consideramos o choque atual severo, mas será temporário se as medidas corretas forem tomadas por todas as partes envolvidas(…)”. Claro que as intervenções do Banco Central devem ser complementares às medidas orçamentais, tal qual já referido.

Ademais, o BCV implementou as medidas numa base tecnicamente fundamentada, com um carácter temporário, mediante uma análise custo/benefício, consciente dos riscos e dos potenciais impactos. Para além disso, tem assumido um papel relevante na consciencialização dos bancos comerciais quanto à sua responsabilidade social, no sentido de contribuírem de forma construtiva para os objetivos preconizados pelo Banco Central.

Medidas no plano prudencial

No plano prudencial, o BCV apoia todas as iniciativas destinadas a disponibilizar soluções sustentáveis para devedores em dificuldades no contexto da atual pandemia. Para o efeito, já tomou um conjunto de medidas de alívio no cumprimento das exigências de rácios de capital por parte dos bancos nacionais, num esforço para assegurar que as instituições financeiras vão continuar a financiar as famílias e empresas sem grandes preocupações regulatórias. 

Neste sentido, durante o período da moratória legal, as falhas de pagamento dos clientes afetados com situações de incumprimento não serão consideradas como crédito malparado (NPL – Non Performing Loans), não tendo efeitos nas imparidades, nas provisões e nos rácios da atividade, o que permite que os bancos beneficiem totalmente das garantias e moratórias que vêm sendo implementadas pelo Governo para apoiar as famílias e as empresas.

Por outro, os créditos que entrem em incumprimento e que estejam sob garantias públicas vão beneficiar de tratamentos prudenciais preferenciais em termos das expetativas de supervisão sobre o provisionamento de perdas.

O BCV vai também ser razoavelmente flexível quando discutir com os bancos a implementação de estratégias de redução dos NPL, tendo em conta as condições do mercado num período marcado por uma pandemia.

Quanto à perspetiva de o BCV comprar ativos tóxicos à banca, não vemos pertinência no presente contexto, por comportar um elevado moral hazard (risco moral), para além de que não estamos perante uma crise financeira, concretamente falando, que justifique um eventual recurso a tal medida. Por outro, não teria enquadramento legal na LOBCV, pelo que seria o Governo a promover a sua concretização e a fazê-lo, eventualmente. 

Numa crise como a que resulta da pandemia de Covid-19, uma das principais preocupações do Banco de Cabo Verde é contribuir para que as empresas e as famílias tenham condições favoráveis para se financiarem. Isto implica criar condições para que os bancos comerciais cumpram o seu papel de financiadores, num cenário de grande incerteza. 

A redução das taxas de juro de referência do Banco Central para níveis praticamente simbólicos, o alívio temporário das regras de capital e operacionais que os bancos são obrigados a respeitar e uma inédita linha especial de avultados empréstimos, a taxas de juro ajustadas ao contexto, para apoiar os bancos comerciais, entre outras, são medidas que expandem o fluxo de dinheiro muito barato para ajudar o país a conseguir reagir melhor aos efeitos do novo coronavírus no sector bancário e financeiro. 

É com esta preocupação presente que o BCV tem vindo a adotar diversas medidas. 

Praia, 29 de abril de 2020

*Governador do Banco de Cabo Verde (BCV)

Publicado na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 662,  de 07 de Maio de 2020

 

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