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Santiago

Atendimento tardio quase custa a vida a doente de covid-19 na Praia

Um casal residente na cidade da Praia, infectado com a covid-19, foi finalmente examinado por um médico no hospital central da Praia após três dias seguidos de deslocações àquela unidade. Só à terceira tentativa e muita insistência, uma radiografia mostrou que a paciente estava com um quadro de pneumonia. O exame não foi realizado  antes porque, alegadamente, a mesma não apresentava um quadro respiratório que recomendasse tal exame.

Este casal devidamente identificado, acredita que, pela situação dramática vivida e os relatos de pessoas que passaram por situações idênticas, muitos doentes de covid-19 terão perdido a vida por falta de
uma assistência adequada e da qualidade do atendimento prestado.

“Se a salvação de muitas pessoas infectadas pela covid-19 dependese da qualidade do atendimento e assistências adequadas, as consequências para o nosso país seriam dramáticas”, considera o marido que, indignado, diz que a maior parte das pessoas que fazem quarentena em casa estão a salvar-se porque os seus sintomas não são graves.

Várias deslocações ao HAN

Esta hipótese é colocada após esse cidadão passar pelo “desespero” de ver o estado de saúde da mulher agravar-se e nada poder fazer porque o hospital alegava ausência de falta de ar para que ela fosse examinada.

“Fomos várias vezes à unidade do Hospital Agostinho Neto que atende os doentes de covid-19 e nos diziam que não tínhamos falta de ar e que, portanto, não havia problema connosco. Cada vez que lá fomos, alertámos que, principalmente no caso da minha mulher, o quadro dela estava claramente a piorar. ”, recorda.

A paciente, na verdade, foi atendida após muita insistência desse casal e da filha que é médica no Brasil e coordena uma equipa na linha de frente do combate à covid-19.

“No terceiro dia voltámos ao hospital com indicações e argumentos de que o quadro dela estava a agravar-se e a sugestão de que deviam fazer-nos uma radiografia de urgência”, explica a nossa fonte.

Após o exame, foi-lhe detectada uma pneumonia, que poderia ser fatal caso a paciente permanecesse em casa.

“Não fosse pela nossa insistência ela poderia morrer em casa. Mas tivessem feito o exame na primeira vez, saberiam que ela estava a desenvolver pneumonia, pois é algo que não acontece de dia para noite”, realça.

Procedimento desajustado

Para esse casal, tornou-se evidente que o procedimento para o atendimento dos casos de covid-19, no HAN, não está a ser o mais correcto, já que basicamente assente nas consequências respiratórias quando, na realidade, há
outros problemas a ter em conta.

“A covid-19 traz outros problemas e não estão a dar a devida atenção a isto. No meu caso, por exemplo, além de outros sintomas mais ligeiros, tive tremendas dores de cabeça. Parecia que uma bomba ia explodir-me nos
ouvidos a qualquer momento. Uma dor extremamente violenta e assustadora, que nunca vivi”,descreve.

Esta situação, para este paciente, mostra que os nossos serviços de saúde não estão a dominar as consequências e sequelas do vírus, havendo, inclusivamente, casos de doentes que, após aparente recuperação, estão a sofrer AVC´s fatais. Ou até casos de cidadãos enviados para casa, com oxigénio, e que acabaram por falecer.

“Inicialmente, temi que pudesse sofrer um AVC ou mesmo perder a vida dadas as intensas dores de cabeça que fui sentido. Por vezes, não sabia quem era e onde estava”, descreve, realçando que, como pôde constatar posteriormente, também o tratamento é demasiado limitado no que toca aos medicamentos receitados, tendo que recorrer a outros meios, para conseguir uma prescrição mais consentânea com a situação.

“Acredito que, se a situação fosse outra, não teriamos sofrido tanto e a nossa vida não estaria em perigo”, conclui.

Alta para pacientes ainda doentes

Pacientes que estão a receber alta médica após 14 dias do diagnóstico da infecção, estando ainda adoentados, é outra questão que preocupa a nossa fonte.

No seu caso, mais de um mês após o diagnóstico, ainda sofre com sequelas que limitam a sua capacidade de trabalhar.

“Aos 14 dias dão-te alta, não precisam saber se estás em condições de trabalhar ou não. No caso da minha mulher, na altura em que lhe quizeram dar alta, é como se mandassem um pessoa moribunda ir trabalhar, salvo o
eufemismo”, considera.

Neste caso, a delegada de Saúde da Praia, Ulardina Furtado, explica que o doente que receber alta e prevalecer com os sintomas, deve procurar o centro de saúde que cobre a sua região.

“As pessoas que fizeram quarentena em casa são seguidas a nível ambulatorial pelo centro de saúde da sua região”, explica Ulardina Furtado, apontando ainda que os centros de saúde dispõem de viaturas que levam uma equipa à casa dos pacientes que apresentem sintomas ou queixas importantes.

Procedimentos para doentes internados

Para os doentes que estiveram internados, o procedimento é o seguinte: “Se foram sintomas graves que exigem internamento, a pessoa continua internada, só que sai do centro de internamento de covid-19 e passa para a área de medicina, onde continua a ser seguida tanto por um médico ou especialista em medicina interna ou
por um clínico geral”.

Nestes casos, vale ressaltar, diz a nossa entrevistada, que este é um problema que afecta também a vida profissional do paciente.

“Tens uma pessoa fragilizada, que sente que não pode trabalhar, mas, do ponto de vista médico, não há justificação para isto porque já tem alta. Cria uma situação de estresse e angústia na pessoa porque ela precisa se justificar no trabalho”, considera.

Questionada se existe capacidade médica para seguir as pessoas que estão em casa, a delegada de saúde salvaguarda que houve uma altura em que os pacientes eram muitos, mas que o sistema de saúde tem conseguido dar resposta.
“Até este momento temos conseguido responder. Claro que houve uma altura em que tínhamos muitos pacientes – ainda temos, mas estão distribuídos pelas áreas de abrangência de cada centro de saúde e nos organizamos de forma que os centros de saúde façam visitas a domicílio a pessoas com necessidade de fazer uma avaliação, especifica Ulardina Furtado.

A NAÇÃO tentou chegar à fala com o director clínico do Hospital Agostinho Neto para o exercício do contraditório, mas este, através do gabinete de comunicação do hospital, alegou indisponibilidade no momento e remeteu uma entrevista para “assim que possível”.

Ordem dos Médicos defende fiscalização independente

O bastonário da Ordem dos Médicos, Danielson Veiga, considera que existe a necessidade de uma entidade independente para fiscalizar e apresentar a verdade sobre casos de reclamação por parte de pacientes emCabo Verde.

Danielson Veiga admite ter conhecimento de queixas e acredita que muitas das situações podem resultar de uma falha na comunicação ou até mesmo na falta de compreensão na relação médico-paciente.

“Inclusive já recebi reclamações de pessoas com uma certa responsabilidade e que acredito que não iam mentir”, sublinhou.

Tendo em conta que é um trabalho feito pelo sector público e admitindo que este, muitas vezes, “não tem o rigor que tem um privado”, este médico-cirurgião defende um sistema de supervisão independente para cuidar das reclamações dos utentes.

“Não só para que seja elaborado um plano de acção, mas também para termos um programa de supervisão independente para apurar a verdade das situações denunciadas”, explicou.

Sobre os casos de alegado mau atendimento, nesta pandemia, o bastonário sublinha que a covid-19 é uma doença nova e que ainda não se sabe o que vai acontecer às pessoas a curto, médio e longo prazo, mas que já há estudos lá fora a indicarem um reflexo “muito grande” na consciência e personalidade dos infectados, o que implica “muito cuidado” e “não encarar a doença como uma gripe”.

Quanto ao caso relatado na peça principal desta reportagem, o bastonário defende que a situação pode depender de profissional para profissional, mas descarta que um profissional ignore deliberadamente alguém com covid-19 e que esteja a relatar sintomas.

“A medicina é uma área humanitária em que o médico passa muito tempo em preparação e às vezes numa situação de ansiedade, de dor e de queixas, o paciente pode sentir-se inconformado em relação ao atendimento’’, salvaguardou.

Mesmo assim, destaca, o paciente que sentir que não recebeu um atendimento adequado deve procurar a direcção do hospital ou até mesmo a Ordem dos Médicos para denunciar o caso.

Carência de formação especializada

Cerca de 70% dos médicos em Cabo Verde não são especializados, diz Danielson Veiga. Este defende, por isso, um maior investimento na formação e capacitação da classe médica, bem como nos cuidados intensivos, que tem sido um parente pobre no combate à covid-19 no país.

“Não temos cuidados intensivos e temos apenas dois médicos especialistas em medicina intensiva que são cubanos e trabalham dentro do Hospital Agostinho Neto, no Banco de Urgências”, afirma.

A maior parte dos doentes têm sido tratados por médicos de medicina interna, com valências na área intensivista, mas que não são especializados e estes também estão escassos, nomeadamente em ilhas remotas e hospitais regionais.

“São coisas que temos de pensar hoje e começar a trabalhar com urgência porque a capacitação e a formação são fundamentais. Não posso pôr um clínico geral a tratar de um doente que deveria ser tratado por um intensivista. Temos de fazer cada coisa no seu lugar para que haja uma boa resposta”, argumenta.

De resto, o bastonário garante que tem havido sessões de actualização e revisão para os médicos que estão na linha da frente da covid-19. O último encontro aconteceu ainda em Maio, como todos os médicos formados em saúde pública.

Recomendações

Em jeito de recomendações, o bastonário chama a atenção para a necessidade de apostar no atendimento pré-hospitalar, com equipas especializadas para atender o paciente no primeiro contacto, antes de chegar ao hospital. Nesta cadeia, os primeiros socorros são prestados pelos Bombeiros e o paciente só começa o tratamento quando chega na unidade hospitalar, desperdiçando um tempo que pode ser crucial para salvar a sua vida.

Por outro lado, com a aproximação demais uma campanha eleitoral no país, e com a experiência do que foi o efeito das últimas campanhas no agravamento da situação epidemiológico, Danielson Veiga exorta as autoridades a montar um programa muito forte de prevenção, sobretudo testar os candidatos durante as deslocações às comunidades para
campanhas, e com teste PCR – que garante a segurança do resultado. Isso independentemente de estar vacinado ou não.

É preciso, segundo diz, ter cuidado igualmente na tomada de medidas, como os estados de calamidade/emergência, para que as medidas sejam atempadas.

A vacinação, segundo o bastonário, deve chegar o quanto antes a 100% da população. “Somos um país pequeno, de emigração, e que tem assente a sua economia no turismo. Tem de ter forças, insistir com a diplomacia, com argumentos que convencem os nossos parceiros”, defendeu.

Para terminar, Danielson Veiga admite a necessidade de envolvimento de todos os intervenientes, de modo a desenvolver, de facto, um trabalho em conjunto e evitar que haja depois opiniões contrárias e colisões desnecessárias. Isso se estende, inclusive, a entidades que, não sendo da medicina, têm também alguma responsabilidade no combate à covid-19.

(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 717, de 27 de Maio de 2021)

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