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Cabo Verde pós crise pandémica: sair de debaixo das saias do Estado e da ajuda externa

Por: João Serra*

No meu último artigo, publicado na edição anterior deste jornal, descrevi a situação crítica da economia de Cabo Verde em 2020, bem como o elevado nível de endividamento do país. Também disse que o quadro analisado “foi mais condicionado do que, na verdade, poderia ser, em resultado das opções políticas erradas dos Governos de Cabo Verde”.

Na verdade, ao longo de vários anos, nem sempre houve, em tempos de crescimento económico, uma correta arbitragem dos recursos públicos. De igual modo, não foram implementadas as necessárias reformas estruturais de que o país tanto precisa, visando, a médio e longo parazo, a diversificação da economia e uma redução significativa da ajuda pública ao desenvolvimento.

Com essa política de muitas escolhas erradas, a nossa margem de manobra para enfrentar o problema que temos pela frente é menor. Também, a nossa flexibilidade é menor, porque a governação do país, nem sempre, foi verdadeiramente adequada àquilo que devia ser: distribuiu-se imprudentemente e não se investiu como se devia. E por isso estamos perante uma situação de dívida mais alta do que aquela que devíamos ter, bem como perante uma necessidade crescente de mais intervenção do Estado e de mais ajuda externa.

Outrossim, a reforma do Estado e da Administração Pública, visando, nomeadamente, a contenção da despesa pública, ou não foi feita ou, quando iniciada, ficou pelo caminho. Assim, continuamos com serviços públicos, em vários setores da Administração do Estado, ineficientes e principais sorvedouros dos escassos recursos endógenos disponíveis.

Entretanto, nunca a despesa  corrente do Estado teve o crescimento – quer em termos absolutos, quer em termos relativos – como o ocorrido de 2016 a 2019, tendo passado de cerca de 41 milhões de contos, em 2015, para cerca de 55 milhões de contos, no ano que precede à pandemia.

E o mais grave ainda é que, perante a atual situação de crise económica e social, o Governo em funções, cujo partido político que o suporta ganhou as duas últimas eleições legislativas com um programa reformista, continua com uma atitude despesista, tal qual iniciou e terminou o seu primeiro mandato, não demonstrando, na prática, preocupação percetível com a necessidade imperiosa de contenção e racionalização da despesa pública. Pelo contrário, continua, ainda, embalado na máxima do “dinheiro que nunca mais acaba”, distribuindo promessas e assumindo compromissos por todo o lado por onde passa, para além de continuar a insuflar, ainda mais, a máquina administrativa do Estado, com a criação de novas estruturas e novos “jobs for the boys”.

Agora, face a mais dificuldades o Governo tem, naturalmente, uma tarefa mais difícil pela frente do que aquela que se poderia ter no caso de se ter tomado a atitude mais correta e equilibrada, que era olhar mais para o futuro e menos para o presente e o próprio umbigo. Assim, o ponto de partida para lidar com esta pandemia, obviamente, está condicionado também por aquilo que foram as opções orçamentais e de política do atual Governo da República.

Com efeito, passados mais de 5 anos e meio de governação, o país não conheceu, ainda, uma única reforma estrutural visando tornar a máquina administrativa do Estado mais enxuta, eficaz e amiga do investimento, particularmente privado. Pelo contrário, continuamos a ter uma Administração Pública cada vez mais pesada e excessivamente politizada/partidarizada e cujo funcionamento é um autêntico sorvedor dos parcos recursos financeiros, consumindo, tal qual há décadas atrás, cerca de 90% dos recursos do Tesouro. E este excessivo consumo faz-se em detrimento dos necessários investimentos em serviços públicos e infraestruturas essenciais para uma maior dinâmica económica. Também, decorrido todo esse tempo, continua, de um modo geral, não sendo visível a melhoria da qualidade dos serviços prestados pela Administração Pública e a sua contribuição para a diminuição dos custos de contexto, enquanto um fator essencial para um bom ambiente de negócios.

Outrossim, as propaladas e amiúde repetidas reformas, que são realmente necessárias para a diversificação da nossa economia e a diminuição das vulnerabilidades do país, praticamente não passam de anúncios pomposos e de frases feitas e ocas, porquanto sem conteúdo e tradução na prática. Dito doutro modo, as reformas são sucessivamente adiadas e as poucas que são iniciadas ficam pelo cominho. Em vez disso, a solução descoberta é o recurso, cada vez maior, à ajuda externa, pouco se importando com a redução das gorduras do Estado e criação de uma capacidade produtiva endógena geradora de recursos a médio e longo prazo. Refira-se que a ajuda externa constituí, ainda, a principal fonte de financiamento dos investimentos públicos, entre 80 a 90%, tal qual há vários anos.

Todavia, Cabo Verde não pode continuar como está. É preciso que o país saia de debaixo das saias do Estado, que alimentam uma função pública gorda e os interesses de grupos específicos, e reduza a despesa corrente. É preciso, também, que se encurte a mão estendida para a ajuda externa, que se mude a retórica falaciosa e que se encete, urgentemente, as necessárias reformas.

Tal qual escrevera em 2007, a reforma da administração pública constitui um problema real e muito sério. O nosso amanhã próximo depende já disto: um aparelho administrativo redimensionado, ágil e flexível, que dê respostas, adequadas e oportunas, à multiplicidade de demandas provenientes de um ambiente caracterizado pela complexidade e mudança acelerada.

A reforma da administração pública não é uma reforma como as outras. Aliás, no terreno, já ninguém deve poder ouvir a palavra “reforma”, pois, de tão repetida (e tantas vezes em vão), já traz consigo um peso de descrédito. Talvez lhe chamássemos antes “transformação”, por ser também o termo que melhor traduz a amplitude e a qualidade das mudanças a serem introduzidas. E esta uma mudança de fundo na função pública cabo-verdiana tem que ser feita mesmo contra os interesses instalados, corporativos e de grupos (partidos políticos e “boys”) e as forças de bloqueio. Para o efeito, deverá, porém, existir uma estratégia clara, mobilizadora e com ideias precisas, e propiciadora dum consenso o mais amplo e construtivo possível, particularmente entre os dois principais partidos políticos nacionais. Tem que haver um pacto de regime em torno desta mudança!

Também como escrevi num artigo relativamente recente, para Cabo Verde importa, sobretudo, aproveitar a atual crise pandémica como uma oportunidade para a realização de reformas estruturais na sua economia que induzam a um movimento de modernização, inovação e de crescente competitividade, com efeitos multiplicadores que se farão sentir a prazo.

Para o efeito, o país tem, por um lado, que superar de forma determinada os constrangimentos à sua competitividade e à sua atractividade, designadamente as carências de qualificações, de competências específicas, de suporte tecnológico, de coesão social e territorial, de ordenamento, de informalidade e de contexto jurídico e administrativo.

Por outro lado, tem que mobilizar a confiança dos agentes e criar as condições necessárias para atrair o investimento privado, nacional e estrangeiro. Isso passa pela valorização integrada dos fatores diferenciadores de referência em que Cabo Verde dispõe de vantagens comparativas estruturantes, bem como das características diferenciadoras positivas do seu capital intelectual, designadamente da identidade multicultural, da flexibilidade adaptativa e da capacidade relacional dos cabo-verdianos.

Praia, 15 de novembro de 2021

*Doutor em Economia

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 742, de 18 de Novembro de 2021

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