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Opinião

O Carapate e a decoração: uma inovadora sugestão de valorização do nosso património natural

Por: Osvaldino Monteiro

A Nação Global Cabo-verdiana, os Estados amigos de Cabo Verde e as Organizações Internacionais parceiras do país aguardavam, com alguma expetativa, a tomada de posse do novel Presidente da República, José Maria Pereira Neves. Os primeiros discursos e as primeiras reações eram esperados com igual expectação, num contexto em que as pertenças ideológico-partidária dos responsáveis máximos de alguns órgãos de soberania nacional são diferentes. A atenção de todos estava direcionada para a recolha de sinais que poderiam (ou não) condicionar, nos próximos tempos, a tão propalada questão da coabitação política. A maturidade democrática dos referidos responsáveis não deixou, no dia da tomada de posse, evidências que a dita coabitação será difícil, a julgar pelos discursos e pelas reações. Todos dizem cumprir o estipulado pela Magna Carta da nação.

O que por agora merece destaque não é o evento em si, a sua importância, os discursos produzidos e as reações recolhidas. Sobre isso, muitos analistas já se posicionaram e continuarão a posicionar. O que granjeia atenção é a decoração utilizada na Casa da Democracia e no Palácio Presidencial no dia da investidura do Presidente José Maria Neves. 

A utilização do Carapate (nome científico: Furcraea foetida) na produção de artefactos e outros objetos de utilidade, não é inédita em Cabo Verde. Muitos se lembram da tarefa de “sotar” “Karapati”. E quando era “Karapati di Lisboa”, a coceira que tomava conta do corpo depois do ato era enorme. Vários objetos de decoração e de utilidade do dia-a-dia do cabo-verdiano, foram imaginados e construídos a partir de “Karapati”. Nos últimos tempos, espécies próximas ao nosso “Karapati” tradicional têm sido importadas e utilizadas para ornamentar e decorar ruas e avenidas. Portanto, esta resistente planta vem convivendo connosco desde há muito tempo, fazendo parte do nosso património natural e cultural.

A novidade maior foi a utilização do carapate para a decoração da Assembleia Nacional no dia da tomada de posse do novo Presidente da República. Não há memórias de, em outros momentos e eventos de grande importância política e simbólica para o país, ter-se utilizado um elemento tão “normal” e “vulgar” do nosso ecossistema, na decoração de espaços e eventos tão nobres, rompendo com a cómoda prática de importação de flores, estas que, talvez representam, ainda no nosso imaginário, o indicador de um espaço chic, deslumbrante e compatível à dignidade do ato em si.

Não foi fácil, e compreende-se porquê, a aceitação da ideia proposta pela decoradora Ana Gomes quando, convictamente, disse aos elementos responsáveis pela gestão do espaço físico da Assembleia Nacional, que ia utilizar carapate (Karapati) na decoração. Reação diferente, segundo Ana, tiveram o Senhor Presidente eleito e a Senhora Primeira Dama que, desde a primeira hora, mostraram-se abertos. As explicações e os detalhes apresentados contribuíram para compreender a proposta.

Mas porquê Carapate?

A primeira ideia que veio à cabeça da decoradora quando foi informada que seria responsável pela decoração do espaço da Assembleia Nacional destinado à cerimónia de investidura do Presidente, foi a de apresentar um conceito, uma linguagem que resumisse a história do país, a história do candidato vencedor das eleições e a valorização dos patrimónios natural e cultural de Cabo Verde. Logo, a ideia de utilização do carapate veio automaticamente à cabeça. Realizou alguns contatos de esclarecimentos da história de carapate junto de pessoas amigas com informações sobre o assunto. Neste caso, a decoradora destaca o grande apoio dos amigos Celestino Fernandes e Démis Lobo e reitera a abertura e colaboração da Sua Excelência Senhor Presidente da Assembleia Nacional.

Não houve dúvidas. Para Ana Gomes, “Karapati” pode simbolizar o tipo de líder que é o presidente eleito, a sua história pessoal e a sua trajetória política. Para Cabo Verde, “Karapati” pode simbolizar a capacidade de resistência do nosso povo que, não obstante os momentos altos e baixos impostos pelos vários capítulos da nossa história social, política, económica e natural, sempre soubemos resistir. Sempre soubemos encontrar energias para um novo arranque, aqui nos cutelos e ribeiras das nossas ilhas, mas também nos vários cantos chuvosos e frios do mundo que as nossas gentes vêm aguentando para realizar os seus sonhos e o sonho do país. Segundo Ana Gomes, “Karapati” tem esses elementos.

A utilização do carapate é, portanto, nas palavras da decoradora, a demonstração de que a natureza nacional possui elementos que podem ser utilizados em qualquer evento. Porém, sublinha que faltam oportunidades, capacidade de inovação, criatividade, originalidade para ver esses elementos com outros olhos.

Desde o início dos trabalhos de preparação com a pintura que deixava “Karapati” a brilhar, Ana sentiu uma grande aproximação entre as pessoas e o “Karapati”. As reações do condutor de Hilux que transportou o produto para a cidade da Praia eram surpreendentes. Não são todos os dias que se transporta “Karapati”, retirados no trajeto Assomada-Picos, para a Cidade da Praia, mormente para o coração do poder do sistema político nacional. A dedicação do pintor em deixar cada peça melhor acabada de que a outra, dava sinais da sua aprovação à ideia. A todos eles a decoradora agradece imensamente.

“Karapati” era mais um elemento dentro do conceito criado

A ideia era decorar o espaço com elementos suaves que iam ao encontro de outras peças de decoração presentes na sala. Procurava-se harmonia no espaço e ao mesmo tempo lembrar a história da nossa terra, do nosso povo e do presidente eleito.

A bandeira constituiu um outro elemento de importância central no conceito criado. Aqui, optou-se pelo aumento significativo de número de bandeiras expostas, contrariamente ao que normalmente se apresenta. Simbolicamente, foram colocadas 15 bandeiras nacionais no palco central da cerimónia, atrás dos assentos. Das 15 bandeiras, 10 representavam as ilhas e 5 os continentes pelos quais se encontra espalhada a diáspora cabo-verdiana. Muitas outras foram colocadas no exterior da Assembleia Nacional, com destaque para a bandeira que é utilizado nas cerimónias de 5 de Julho. O número de bandeiras deveu-se também à preocupação de gerar uma maior aproximação das bandeiras às pessoas. O povo cabo-verdiano precisa aproximar-se dos seus símbolos nacionais. A bandeira deve deixar de aparecer só nas cerimónias oficiais, pois ela tem de passar a fazer parte da nossa vida diária, como Ana Gomes enfatizou. E foi gratificante, segundo a decoradora, ver pessoas a tirarem fotografias junto das bandeiras.

“Karapati valorizan”

De desconhecida à apresentadora de uma proposta de decoração “estranha”, Ana assegurou que o resultado final do trabalho permitiu a sua valorização. Sem nenhum receio, admitiu nesses termos: “Karapati valorizan”. Todos os envolvidos no projeto reconheceram a boa qualidade do trabalho realizado. No final, sublinha Ana, sentiu a aproximação das pessoas a parabenizá-la pelo trabalho realizado. Confessa que sentiu um sentimento misto de contentamento e frustração. Há indícios claros que ainda andamos longe de posturas de valorização de determinados elementos da nossa história e do nosso património.

Ana Gomes orgulha-se do projeto executado. Sente que é preciso apresentar mais propostas do tipo de modo a romper com as práticas tidas como normais, mais chics e adequadas a determinados espaços. Orgulha-se, acima de tudo, de ter demonstrado que o nosso ambiente, o nosso património natural tem elementos que, quando afrontados com critérios de originalidade, criatividade, inovação e, sobretudo, posicionamentos um pouco fora de caixa, poderemos conseguir resultados fantásticos a um custo irrisório, valorizando a nossa história, identidade e cultura. O que a decoradora quis mostrar é que, aparentemente do nada, ou do produto que se tornou “nada”, “comum”, “vulgar”, pode-se fazer muita coisa.

De resto, a decoradora que, nos seus trabalhos, começa sempre pela pessoa, espaço, história e implicações financeiras, acredita ter conseguido ler corretamente o perfil político e a história pessoal do Presidente eleito. Por isso, apresentou uma proposta que demonstra a importância do fincar os pés no chão, pensar com as nossas próprias cabeças, ditames que, sem margens para dúvida, considera que inspiram o novo Presidente da República de Cabo Verde.

Nunca é demais relembrar que “Karapati” teve uma grande importância económica nas ilhas, constituindo uma matéria-prima essencial no dia a dia do cabo-verdiano de outrora. Hoje já não é tão importante devido a importação de produtos que antes eram transformados ou feitos nas ilhas a partir de carapate. Quem tinha terras, tinha possibilidade de ter esta planta no cabeçalho ou no “pé de seu lugar”, que enquanto protegiam a propriedade da erosão, aproveitava-se a folha, a flor/madeira  ou ainda “tundum”. A decorada Ana Gomes mostrou-nos que é possível recuperar este e outros produtos do nosso ambiente natural e atribuí-los um lugar de destaque no nosso dia a dia.

Dezembro 2021

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 750, de 13 de Janeiro de 2022

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