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Cultura

Caso edifício Luso-Africana no Platô: Quem manda afinal?

Raul Barbosa

Está longe de terminar a polémica à volta da demolição do Edifício Luso-Africana, situado no Centro Histórico do Platô. Após a sua total demolição, a tutela já levou o caso à barra dos tribunais, por “grave atropelo à lei”, enquanto o dono da obra, o Grupo Kim Negoce, diz ter do seu lado a legalidade. Entre os dois litigantes está a Câmara Municipal da Praia, que parece dar razão ao proprietário da obra.

As primeiras obras de demolição do edifício aconteceram no passado mês de Julho e foram seguidamente interrompidas pelo Instituto do Património Cultural (IPC), que pediu o embargo, por se encontrar classificado como Património Histórico, como de resto a maior parte dos edifícios do Platô.

Mesmo assim, após as chuvas do início de Setembro, o Grupo Kim Negoce, proprietário do edifício que pretende construir no local, ordenou a demolição total daquilo que outrora foi a casa Luso-Africana, alegando risco de desabamento de toda a estrutura.

Desautorizado, o Ministério da Cultura e Indústrias Criativas (MCIC, tutela do IPC), diz que a retoma da demolição do edifício constitui um “atropelo grave à lei” e decidiu levar o caso ao tribunal.

“Platô é uma das áreas classificadas como património no total, está na lista indicativa da Unesco”, lembrou o ministro, Abraão Vicente, em declarações à imprensa, na segunda-feira, à margem do Conselho de Ministros, em Ribeira Grande de Santiago.

Aquele governante, segundo advertiu, vai agir “até às últimas consequências”, garantindo que tem instrumentos legais para tal.

“O que houve, foi um arrombamento premeditado por parte do proprietário do edifício para provocar um aceleramento de processo, num momento que o IPC estava sentado com o promotor para negociar os aspectos arquitectónicos do edifício”, sublinhou.

Kim Negoce nega classificação

Do outro lado, o Grupo Kim Negoce não reconhece o edifício em causa como Património Cultural, ou Histórico, tendo dito, em um comunicado divulgado no último sábado, que a legalidade está do seu lado no processo.

“Legalmente o edifício em causa não está classificado, conforme referido no próprio parecer do IPC emitido para o efeito. O Regime Jurídico do Património Cultural (Lei n° 85/ IX/2020) determina no n° 4 do artigo 17° que os bens culturais são classificados mediante Portaria do Ministro de tutela”, sustentou, indicando, entretanto, que essa portaria “não existe”.

“Essa Portaria não existe, logo, o edifício não está classificado e infelizmente estão a agir como se fosse, contrariando e desrespeitando a própria lei”, acusou o grupo privado.

O investidor evoca um procedimento de classificação, segundo o qual, diz, há um processo prévio a se respeitar, mas que, entretanto, não foi sequer iniciado.

Conhecimento deficitário da lei  

Assim como o investidor, o presidente da Câmara Municipal da Praia também surgiu a levantar dúvidas sobre a classificação do edifício enquanto Património Cultural, ao exortar as instituições a consultarem se o mesmo consta da lista de Patrimónios da UNESCO. Para Francisco Carvalho o recurso ao tribunal não significa, necessariamente, que o recorrente tem razão.

Para Abraão Vicente, a contar pelos pareceres emitidos pela autarquia e por este posicionamento daquele autarca, há um conhecimento deficitário da lei-quadro do Património Cultural.

“Eu acho que as instituições têm de ser melhor assessoradas. Se conhecesse bem a lei-quadro do Património, aprovada pela Assembleia Nacional, o presidente da Câmara Municipal, obviamente, não faria essas declarações, da mesma forma que o dono da obra não faria a confissão pública, primeiramente, de que transgrediu, derrubando o edifício”, defendeu.

Classificação do Sítio Histórico  

Segundo o ministro, o Centro Histórico do Platô, no seu todo, é classificado e está na lista indicativa da UNESCO, pelo que não existe uma classificação “casa a casa”, e sim uma classificação do “sítio histórico”.

O executivo avisou, por outro lado, que embora o IPC esteja aberto ao diálogo, o Governo “não está aberto para aceitar o confronto em praça pública à ordem à autoridade nacional”.

Demolido, entretanto, o que restava da antiga Luso-Africa na, uma sociedade que vinha do período colonial, o Grupo Kim Negoce, que se vem espalhando em rede por vários cantos da capital e da ilha de Santiago, conta construir um prédio moderno, com vários pisos. Para isso, e reconhecendo as ressalvas impostas pelas autoridades, o Grupo afirma que o projecto teve de ser retocado em “tempo recorde” para ser levado avante.

Agora, com a intervenção do MCID, resta saber por quanto tempo a cidade terá no local apenas escombros da antiga Luso Africana.

 

Questão de “bom senso”

Para o jurista João Santos, ainda que houvesse alguma lacuna na legislação, a gestão deste dossiê, que admite não estar a acompanhar na totalidade, deve ser, antes de mais, uma questão de bom senso.

“O Direito não pode ser visto apenas como o que está escrito na lei ou não. A invocação da ilegalidade pelo IPC, creio, deve ser entendida como algo que vai muito para além da letra da lei. Agora, inexistindo lei, há que puxar pela cabeça, há que deixar o bom senso funcionar”, defendeu, ao A NAÇÃo, quando questionado sobre a interpretação dada à matéria, pelo investidor.

“Então, um edifício como aquele, situado no coração do Platô, pela sua vetustez, não é lógica e obviamente tida como um património? Eu creio que não é necessário haver lei para se ver que aquele prédio, pela sua localização, pelo estilo arquitectónico, não pode ser visto nem tratado como uma casinha qualquer, situado no Ponta Belém, por exemplo”, acrescenta João Santos.

  Para este jurista, o facto de a cidade ter de desenvolver e de os empresários terem de encontrar estímulo para investirem, não é incompatível com a ponderação que deve ser feita, mesmo na existência de uma lei que expressamente cataloga um edifício qualquer como património.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 784, de 08 de Setembro de 2022

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