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Economia

Mário Paixão, ex-PCA da ASA: Nos transportes aéreos “estamos pior”

Imagem: facebook-bestfly

Ao longo das várias reportagens deste caderno, e pese embora a falta de resposta de alguns sujeitos, A NAÇÃO tentou levantar o debate sobre a actual situação dos voos domésticos, mas também internacionais, numa ponte entre o passado e o presente.  Afinal, estamos melhor, ou pior desde a privatização das ligações aéreas inter-ilhas? Mário Paixão, ex-presidente do Concelho de Administração da ASA (2001 a 2015), com vária experiência do sector, tem sido uma voz crítica nesta matéria.

Do seu ponto de vista, em matérias de voos domésticos, não tem dúvida: “Estamos pior”, mesmo com todos os constrangimentos que também aconteciam, na altura, antes de o Governo proceder à privatização do sector.

No caso doméstico, Mário Paixão começa por lembrar, “a TACV saiu do mercado em 2017, após assunção desse serviço pela Binter Cabo Verde. Não houve nenhum contrato de concessão das operações domésticas e às promoções iniciais Bintaço, seguiu-se uma série de conflitos entre a Binter/TICV e a AAC (autoridade aeronáutica), com chantagens de toda a ordem e aumentos de preços inacreditáveis”.

Na sua óptica, na altura, o “governo foi interferindo como quis nas competências da autoridade aeronáutica”, e a crise pandémica acabou por “agravar” a situação que “descambou” para um contrato de concessão emergencial com a BestFly por seis meses, inicialmente, tendo a companhia depois comprado a TICV (antiga Binter).

“Os serviços aos passageiros deterioraram enormemente, a Bestfly desmantelou agências nas ilhas, avarias sucessivas penalizaram as ligações aéreas, a confiança nos transportes aéreos caiu, os preços continuam elevadíssimos e viajar entre as ilhas continua precário”, argumenta.

“Ligações dignas”

Mário Paixão é crítico e questiona, como “bizarro”, que um país que quer ser um destino turístico de “excelência não é capaz de promover ligações aéreas dignas ao seu próprio povo, muito menos aos visitantes estrangeiros que querem visitar outras ilhas”.

Questionado se o modelo que temos, que acaba por ser de monopólio da Bestfly e antes da Binter, é o que melhor serve os interesses dos cabo-verdianos, é cirúrgico ao dizer que não: “Os cabo-verdianos estão preocupados é com ligações frequentes, rotas ponto-ponto e bons preços”.

Nesse contexto, defende que caberia ao governo elaborar “um caderno de encargos e submetê-lo aos interessados e potenciais concessionários, estabelecendo condições, direitos e deveres de cada parte, inclusive, obrigações de serviço público”.

Autoridade reguladora

O nosso interlocutor argumenta que a concessão de serviços aéreos a privados “não se faz sobre joelhos”, e muito menos “sem transparência e retirando competências à autoridade reguladora independente”.

Num mercado liberalizado, defende, essas competências “deviam se reforçadas e não diminuídas”. “Pagamos todos a factura por essa má conduta do governo”.   

Interpelado se poderemos ou não equacionar uma má gestão da Bestfly, face a todos os problemas já apontados, o mesmo é ponderado e distribuiu, por assim dizer, eventuais responsabilidades.

“Da boa ou má gestão deviam falar os accionistas e a autoridade aeronáutica que detém instrumentos legais de supervisão, auditoria e emissão de certificados e licenças ao operador aéreo. Face ao desempenho e problemas técnico e operacionais da BestFly e das falhas repetidas nos serviços aos clientes, pode-se inferir que há problemas de gestão e que há omissão por parte da Agência da Aviação Civil nas inspecções e supervisão”. 

Perda de capacidade de supervisão

Na óptica deste analista, a AAC “perdeu capacidade de supervisão e regulação”, seja, como diz, por “culpa” do governo, ou da administração.

“Houve uma debandada dos quadros técnicos que foram formados a peso de ouro. Onde estão? No estrangeiro, trabalhando com governos e instituições que valorizam a sua qualidade e experiência. Foram eles que construíram esse edifício institucional, regulamentar e operacional robusto que conferiu a Cabo Verde um enorme prestígio na sub-região africana e no mundo”, recorda.

Nesse aspecto, é acutilante ao dizer que o governo “falhou” na valorização desse capital humano. Agora, diz esperar que “os que lá estão” e “a Administração agora reforçada” tenham “coragem para reverter a capacidade erodida”.   

Contudo, deixa transparecer que é possível reverter a situação a bem da conectividade aérea entre as ilhas. “Mas na aviação nunca é tarde para corrigir falhas de gestão e garantir a segurança e a confiança nos serviços aéreos”.   

Solução: frota mista adaptada a Cabo Verde

Interpelado sobre que modelo sugere para que possamos ter transportes inter-ilhas aéreos mais eficientes e mais baratos, Mário Paixão diz que sempre defendeu um modelo em que o governo define um caderno de encargos, a partir de um estudo de mercado elaborado por empresa especializada independente. Sendo que, depois, os interessados apresentam as suas propostas de serviços aéreos.

“A prática não tem sido boa: fabricantes e lessors vêm cá com as suas propostas, impondo as suas soluções em termos de frota que acabam por penalizar rotas, frequências e preços”, afirma.

O resultado, diz, é que, com rotas diferenciadas em termos de distância e tráfego, temos, por exemplo, um mesmo meio aéreo ou um meio “não adequado” a servir São Vicente-Santiago em 35 minutos e Santiago-Maio em sete minutos.

E garante:  “Todos saem a perder: os utilizadores que serão obrigatoriamente penalizados nas frequências e no preço por existência de excesso de capacidade, a transportadora que tem de lidar com manutenções à catadupa devido à intensidade de rotações – aterragens e descolagens – em rotas de curto alcance, serviços com baixos índices de qualidade e satisfação e o governo que tem de gerir instabilidades em cadeia”. 

A solução, defende, passa por frota mista, com pelo menos dois tipos de aeronaves com capacidade adequada para as condições de Cabo Verde. “O mercado oferece modelos eficientes e com custos de operação muito mais baixos, o que teria reflexos positivos nos preços ao consumidor e no tráfego, inclusive estímulos ao turismo interno”. 

Continuidade da TACV, por razões “estratégicas”

Apesar de ser transformado num poço de prejuízos e num sorvedouro do dinheiro dos contribuintes ao longos de largos anos, Mário Paixão defende a continuidade da TACV, seja de forma pública, privada ou mista, por razões estratégicas.

“Somos ilhas, com um mercado endógeno minúsculo e fragmentado, na periferia da Europa e da África Ocidental. Estamos isolados e extremamente dependentes da TAP que aproveita a sua inserção numa aliança e numa boa rede de rotas no mundo para captar o tráfego para o Hub de Lisboa, impondo um modelo tarifário pouco atractivo para os passageiros cabo-verdianos”, explica. 

Os “males” da TACV, admite, são de “longa data” e podem ser “corrigidos”, como afirma, com uma gestão “profissional” e conhecedora da indústria, “blindada a interferências políticas”.

“Se isso não for possível, então a TACV manter-se-á em coma e os tubos serão desligados mais cedo do que se pensa. De qualquer modo estamos bem servidos com a TAP e outras companhias aéreas em temos de conectividade, regularidade, confiança e segurança”, finaliza.    

Hub – “pura fantasia”

Questionado sobre se a intenção da criação de um Hub continua a valer a pena, Mário Paixão recorda que o conceito de “Hub and Spoke” foi uma visão que ajudou a construir em 2003.

“Tinha como pivot a TACV porque quem faz o Hub são boas companhias aéreas, apoiadas em direitos de tráfego e boas infra-estruturas aeroportuárias”, começa por dizer, para prosseguir que, tempos depois percebeu que não era possível.

“Por razões claras: tínhamos e temos uma companhia de bandeira sem capacidade operacional, que faz derivas estratégicas ao gosto das administrações, que não está em nenhuma aliança mundial (nem tem condições para lá estar), não tem acordos com nenhuma transportadora credível e que nem é capaz de atrair ou dominar o tráfego étnico e turístico com origem/destino no seu próprio país”.

Do seu ponto de vista, o “fracasso” da parceria com a Lofleidir Icelandic acabou por ser “uma machadada” nessa estratégia do Hub.

“Com quem fará o Hub agora? Com a TAAG, outra companhia aérea com sérios problemas de eficiência e fraca cultura de segurança? O Hub só rende como instrumento de propaganda. Veja o que aconteceu com os badalados 11 aviões que nunca passaram de publicidade e acabaram num solitário B757 ainda parqueado no Sal depois de um atribulado processo de arresto”, argumenta.

“De todo o modo acho que há nichos de mercado e de negócio para a TACV desde que ponha os pés no chão e saiba tirar vantagens da sua posição. A construção do Hub não passa de pura fantasia”, avisa. 

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 787, de 29 de Setembro de 2022

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