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Amadeu no Supremo

Por: Germano Almeida

O deputado Amadeu Oliveira, preso na cadeia civil de S. Vicente desde Julho de 2021, portanto, há 17 meses, condenado a uma pena de sete anos de prisão pela acusação de ter cometido um crime de “atentado contra o Estado de Direito Democrático”, apresentou as suas alegações de recurso ao Supremo Tribunal de Justiça. 

São nada mais nada menos que 170 páginas em letra miúda. Eu já tinha achado excessivas as 90 páginas do acórdão que o condena (por aquilo que escreveram bastava a última página), dá ideia que acusação e defesa estão numa competição renhida.

Mas não obstante enorme, é um documento bem escrito, fundamentado numa linguagem clara, até de leitura agradável. Porém, inútil! Perfeitamente inútil! A dialética já ensina que não há “sim” que não contenha o seu “não”. E também todos nós aprendemos que onde há dois juristas, há pelo menos três opiniões. De modo que o recurso do Amadeu é uma simples formalidade, muito antes de ser preso ele já estava condenado (lembrem-se da necessidade de contê-lo do presidente da Assembleia Nacional), sobretudo agora que, em muito má hora, os juízes descobriram esse mar sem fundo nem limites que é a acusação de atentado ao estado de direito democrático. Agora é que ele está bem lixado!

O povo badiu tem uma expressão muito significativa para mostrar a ideia de perene impunidade de alguém: fazê quexa di mim é fazê papa na mar!

É o caso do Amadeu. Recorrer da Relação para o Supremo por causa da sentença que o condenou a sete anos de cadeia, é exatamente como fazer papa no mar. Inútil! Bem, mesmo para quem não acredita, os milagres às vezes acontecem, portanto…

Não obstante as 170 páginas de letra miúda, o Amadeu teve o bom senso de deixar breves conclusões no final do texto que acredito sejam lidas porque na realidade é pouca coisa, simples duas páginas onde ele resume em cinco pedidos o seu longo arrazoado. E pede que seja absolvido do crime de atentado ao estado de direito democrático.

Essa parte é que eu acho impossível, ele ser absolvido do chamado crime de atentado ao estado de direito. Acho impossível porque Amadeu absolvido desse crime, é Amadeu fora da cadeia. Os outros crimes são bagatelas penais, colocadas no processo apenas para enfeitar. E o receio dos magistrados, expressado abertamente pelo digno agente do Ministério Público Vital Moeda em nome de todos, é o Amadeu solto vir de novo exasperar os magistrados com as suas provocações.

É verdade que ele promete, mesmo nessas longas alegações ele tem um parágrafo em que diz já não haver razões para criticar os magistrados, porém esses estão céticos quanto ao respeito a essa palavra dada, de modo que acham que ainda o melhor e mais seguro é deixá-lo ali a chaves, tanto mais que ele não está a dar mostras de domesticar-se. É o que, ainda que por outras palavras, diz o acórdão condenatório.

Tivesse o Amadeu beneficiado de um julgamento feito por magistrados isentos, e sequer o recurso ora interposto seria necessário. Porque ele nunca seria condenado pelo crime de atentado ao estado de direito democrático. Porque esse é um crime que é uma espécie de um fato feito por medida, não veste a qualquer um e sequer pode ser vestido à toa. Por exemplo, um deputado comete o crime de atentado contra o estado de direito, se cometer o facto incriminatório: a)no exercício das suas funções de deputado; b)por causa dessas funções de deputado, c)com desvio das funções de deputado; d)com grave violação dos deveres de deputado.

Muito bem, vamos admitir, como um suponhamos, que Amadeu Oliveira teve responsabilidade na saída do seu constituinte do país. Ele chegou na fronteira e disse, Eu sou o deputado Amadeu Oliveira e ordeno que não impeçam este homem de sair do país! E os agentes, amedrontados diante daquela voz de autoridade, logo responderam, Às ordens, senhor deputado!, e lhe colocaram o carimbo no passaporte e fizeram uma continência apavorada.

Ora é preciso ser dito que os magistrados, do ministério público e judiciais, que se envolveram na prisão e condenação do Amadeu Oliveira cometeram uma ignomínia. Tudo leva a crer que o fizeram em nome de alguma coisa. Mas em nome da Justiça, certamente que não, infelizmente a justiça ficou longe dessa perversão que desonra Cabo Verde.

O crime de que o Amadeu Oliveira está acusado bem perfeitamente poderia ser chamado de uma “ideia criminosa”. Na realidade da vida não existe, porém tem existência real dentro da cabeça dos magistrados que o acusaram e julgaram. E nessa lógica, não se protestaria se ele fosse condenado a uma “ideia de punição”.

A esse propósito, existe uma estória muito edificante entre as lendas populares portuguesas. É o caso de um comerciante de queijos e enchidos que tinha um estabelecimento bem fornecido e donde evolava um permanente e delicioso e convidativo cheiro. E havia um pobre cujo almoço era sempre um mísero pau duro encontrado algures. Mas descobriu que o pão sabia-lhe melhor se comido à porta do estabelecimento dos queijos e enchidos aspirando esses odores penetrantes. E assim passou a fazer. Mas no fim da semana, recebeu uma conta do dono da loja: Deve-me x! De quê, estranhou, não comi nada! Mas cheirou! Não se entenderam e por isso foram ao juiz da terra. O juiz ouviu as partes e sentenciou: Tem que pagar sim, mas vai fazer o seguinte: meta o valor pedido em moedas dentro de uma lata e vá chocalhá-las à porta da loja até o dono dizer que já chega. E assim se pagaram.   

Esse exemplo deveria servir os magistrados que sentenciaram Amadeu. Porque uma evidência que ninguém precisa ir para a escola para aprender é que direito é bom senso. Direito é simples bom senso. Onde há sociedade há direito. Regras de equilíbrio social. É por isso que a punição do Amadeu é energicamente rejeitada, se calhar até por aqueles que a decidiram. Porque é simplesmente um processo nazista. E é pena que aqueles que podiam ter o poder de dizer que o rei está nu, continuem calados e a olhar para o lado, sob o falso pretexto da absurdidade que é a falácia da separação de poderes. E quando tranquilamente um par de magistrados condena um homem a sete anos de prisão pelo motivo fútil como é esse caso do Amadeu Oliveira com a conivência da Assembleia Nacional e perante a indiferença dos demais órgãos do poder do Estado (presidente da República, Governo e Tribunais), temos que reconhecer que afinal das contas algo vai muito mal nesta República apresentada como exemplo africano.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 799, de 22 de Novembro de 2022

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