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Política

32 anos do municipalismo: “Participação cidadã é o elo mais fraco da democracia em Cabo Verde”

Jacinto Santos e Eugénio Veiga, pioneiros no municipalismo em Cabo Verde, nas Câmaras da Praia e de São Filipe, respectivamente, participaram, esta quarta-feira, no debate sobre os 32 anos do poder local em Cabo Verde, promovido pela Comissão Nacional das Eleições. Entre outras preocupações, defendem a necessidade do reforço da participação cidadã na democracia, por via de um grupo coeso e unificado. A autonomia financeira das autarquias foi outra preocupação levantada.

Jacinto Santos foi o presidente da Câmara Municipal da Praia de 1991 a 2000 e Eugénio Veiga foi presidente da Câmara Municipal do Fogo e, posteriormente, de São Filipe, durante 20 anos.

Juntamente com o também antigo autarca Maurício de Jesus da Luz, foram os convidados da CNE para analisar o percurso que o país fez nestes 32 anos de pluralismo e democracia local e traçar caminhos para tentar solucionar aspectos que ainda hoje levantam preocupação.

Um dos aspectos trazido a debate foi, pois, a participação cidadã na governação das autarquias, participação essa que, para Jacinto Santos, é actualmente o parente pobre do sistema municipal cabo-verdiano.

“Falo da participação no sentido da capacidade de escrutínio da gestão pública local, a capacidade de acompanhamento do escrutínio dos grandes investimentos públicos locais, que têm um impacto na transformação dos territórios e no modo de vida das pessoas”, aponta o ex-autarca.

Consciência do impacto directo da participação cívica 

Jacinto considera fundamental essa participação activa dos cidadãos na vida política, na governação dos seus municípios, com consequências importantes em aspectos como  a forma como se urbaniza, a forma como se faz um loteamento e um plano urbanístico, uma vez que estas decisões têm impacto directo no tipo de vida que as pessoas levam e no tipo de cidades que estão a ser construídas.

“Embora a lei preveja a participação dos cidadãos, nos já sabemos que a literacia democrática é baixa em Cabo Verde, a auscultação pública que a lei obriga é insuficiente”, sublinhou, não obstante a lei quadro da administração pública de 2010 obrigar a que na orgânica dos municípios tenha organismos que garantam a participação de todos os cidadãos.

Desgaste e desconforto

Eugénio Veiga, por seu lado, fala de um certo desconforto e desgaste face às questões políticas.

“Os cidadãos também fazem parte do processo, independentemente da legislação. Há muitas legislações em Cabo Verde, mas precisamos de boas leis, justamente para poder colmatar esta realidade que por vezes contribui para distanciar cidadãos do processo de pensamento e concretização de ações úteis no seu próprio território.  Julgo que face a essa realidade, há cada vez mais menos interesse na participação das pessoas, por questões político-partidárias”, considerou.

Veiga recorda, neste sentido, que nos primeiros anos do municipalismo havia um entusiasmo grande das pessoas, em todo o processo democrático, que, entretanto, não se verifica actualmente.

“Esta matéria deve ser bem ponderada porque pode estar a indiciar desgaste acentuado, e, até, algum desconforto do relacionamento entre os eleitores e os eleitos.”, alertou.

Grupos civis fragmentados

Outro aspecto que, no entender de Jacinto Santos, não tem facilitado a participação de iniciativas cívicas, por exemplo, no processo eleitoral, é o facto de elas estarem muito fragmentadas, em pequenos grupos, em detrimento de um único grupo.

“Em 1991 e em 2020 tivemos dois picos de participação cidadã nas eleições. À medida que vamos alcançando a estabilidade no sistema, grupos de cidadãos começam a ser um fenómeno residual porque os partidos políticos se consolidam e ocupam espaço.  Começa a estreitar o espaço de intervenção de grupos de cidadãos nas eleições e confirma-se a natureza de base partidária do sistema político cabo-verdiano”, analisa.

Segundo recordou, só em situações excepcionais é que grupos de cidadãos ganharam eleições, em momentos de alguma fragilidade no seio dos partidos.

“Lá onde grupos de cidadãos têm o voto concentrado, tem hipóteses de entrar na Câmara Municipal e Assembleia Municipal. Mas lá onde haja dispersão, como o caso da Praia em 2020, em que houve dez grupos de cidadãos, a soma de votos concentrado num grupo permitiria um assento na AM, mas nenhum desses grupos conseguiram eleger um assento”, exemplificou.

Contudo, ficou por analisar e responder, como é que as eleições municipais registam taxas tão altas de abstenção, se o poder local é o dito poder mais próximo dos cidadãos.

 “O alicerce da democracia é o poder local”

Para o primeiro autarca da capital do país, ainda há, nas relações poder central-poder local, “pequenas” tensões porque o autarca é muitas vezes visto como um poder político menor.

Entretanto, defende que é nas autarquias que está o alicerce da democracia, enquanto poder local forte, autónomo e independente.

“E esta percepção inicial de que o autarca é o político da segunda linha, criou graves problemas em constituir listas. Por isso que logo nas primeiras eleições autárquicas a taxa de abstenção foi de quase 50%, porque a cultura democrática, o conceito do novo poder instituído não estava bem interiorizado e as pessoas entendiam que bastava a substituição do Governo e já estava instalada a democracia”, frisou.

“Tudo se faz nas autarquias”

Na mesma linha, Eugénio Veiga, pioneiro no Fogo, reforça que o poder local é a raiz de todo o processo democrático em Cabo Verde.

“Praticamente tudo se faz nas autarquias. É lá que estão as pessoas que votam e que participam nas eleições. E também nas autarquias é que se constrói a base económica e social. E nenhuma casa pode ser considerada sólida se não tem uma excelente base”, frisou.

Quanto a ser visto como um poder menor, diz que a atitude do poder central perante o poder local é uma forma de descredibilizar permanentemente o poder local.

“Mesmo a constituição prevê órgãos infra e supra municipais. Mas eu entendo que nunca se deu um passo concreto para a sua instalação. Isto porque o poder central tem medo do poder local e também o poder local possivelmente poderá ter receio de um outro órgão supra municipal e infra municipal”, analisa.

Modelo administrativo precisa de ajustes

Para Jacinto Santos, o sistema eleitoral municipal precisa de “alguns ajustes” para consolidar o processo democrático que leva à construção do poder local. E o grande déficit, na sua visão, tem a ver com a Assembleia Municipal.

Um destes tem a ver com a questão da acumulação de mandatos, quando o vereador e o presidente da câmara são inelegíveis ao parlamento para o círculo onde exerce as funções, mas, por outro lado, há deputados a exercer as funções de presidente da AM.

“Isto cria uma vantagem para um actor político que beneficia de dois estatutos. Contrariamente, a lei estabelece que os eleitos locais têm direito à imunidade, mas ainda não se legislou sobre imunidade sobre os eleitos municipais. Há um desequilíbrio no sistema, porque como deputado utilizo o parlamento para introduzir no debate parlamentar questões de foro estritamente municipal e o presidente não está lá para se defender”, apontou.

Para estas e outras questões, Eugénio Veiga evoca a necessidade de um aperfeiçoamento o mais breve possível,  sob pena de se estar a colocar o poder local na subalternidade.

“Mesmo a Constituição da República, apesar de considerar a autonomia do poder local como irrevogável em caso da sua alteração e revisão, consagra grande parte também a obrigatoriedade administrativa perante o poder central. O que é absurdo quanto a mim, porque o poder local, com a legitimidade que têm, igual a legitimidade do poder central, ter que prestar conta administrativa constantemente ao poder central, até as atas das reuniões”, exemplificou.

Listas únicas nas eleições

Este antigo autarca deixou ainda a sugestão de se adoptar listas únicas nas eleições autárquicas, da mesma forma que se faz nas eleições legislativas.

“Uma lista única e essa lista e essa lista é que dita o presidente da CM de cada um dos municípios. A lista vencedora. Evidentemente que dessa lista sairá também o presidente da AM, que passaria a ter duas legitimidades complementares: a legitimidade democrática direta pelos votos alcançados e também a legitimidade dos elementos eleitos da lista ganhadora”, defendeu.

O debate, promovido a partir da Cidade da Praia e transmitido em vários canais de radiodifusão, abarcou ainda a questão do financiamento das autarquias, a descentralização de poderes, a relação com o poder central e o próprio papel da CNE neste processo de desenvolvimento e maturação do poder local.

Cabo Verde realizou as primeiras eleições municipais há 32 anos, em 15 de Dezembro de 1991.

Pode conferir mais detalhes do debate no próximo número do semanário A Nação.

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