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Cabo Verde: Estado de uma Nação entre a doce mentira e a dura verdade

Por: João Serra*

Qual é o Estado da Nação?

Na minha opinião, o país não vai bem: Cabo Verde é cada vez mais uma democracia sofrível e muito pouco meritocrática, e um país onde a riqueza é distribuída mais “para cima” do que “para baixo”. Na verdade, nem todos os cidadãos são envolvidos na vida coletiva, expressam livremente as suas opiniões e opções político-partidárias e desempenham as profissões pretendidas e cargos em função do mérito, seja porque há condicionamento da liberdade e açambarcamento de praticamente todas as esferas de atividade social, pública e económica, seja porque as oportunidades são diferentes, seja porque há funções a que só alguns (os “boys”) acedem.

Nesse quadro, o poder político não responde aos interesses de todos e não há pejo algum na prática de atos reprováveis que tinham sido veementemente criticados em anteriores detentores do poder. E a perceção da corrupção, do nepotismo e do compadrio é generalizada, tendo aumentado, ultimamente, em resultado de vários e fortes indícios de falta de transparência e de ética na gestão da coisa pública.

 

“Dejá vu”

No corrente mês de julho, ocorrerá o tradicional debate sobre o Estado da Nação. Na Assembleia Nacional, será feito o diagnóstico do país, na perspetiva dos sujeitos parlamentares. Como já é habitual entre nós, o Governo e o partido que o sustenta (Situação), resumidamente, vão dizer e defender fervorosamente que o país vai bem – uma governação exemplar, onde as instituições do Estado funcionam e cumprem as suas funções e a sua população vive cada vez melhor, fruto de políticas assertivas e de medidas de uma consciência social sem precedentes. Particularmente, a narrativa de o atual Governo ser o “mais social já existente em Cabo Verde”, é diariamente reiterada com propaganda política, particularmente na rádio e televisão públicas, numa dimensão jamais vista no país, tanto mais que, por vezes, envolve o aproveitamento despudorado da situação de vulnerabilidade por que passam muitos cidadãos residentes.  

Para a Situação, só não estamos a viver completamente num mar de rosas, por causa da tripla crise – seca, pandemia de Covid-19 e guerra na Ucrânia. Eventuais problemas ainda persistentes e não resultantes da tripla crise, são exclusivamente da responsabilidade da governação anterior. 

Assim sendo, a grande preocupação da Situação, no debate sobre o Estado da Nação, só pode recair no único problema que existe no país – o principal partido da Oposição, concretamente na sua alegada postura antipatriótica, traduzida na tentativa de obstruir a implementação das decisões estratégicas para o país, e de manipulação da opinião pública com inverdades para condicionar a ação governamental. Na retórica situacionista, esse partido é o grande responsável por o país ter os problemas que ainda tem, em resultado do seu suposto posicionamento ideológico estatizante e iliberal, sendo que os últimos sete anos do governo em funções foram dedicados a retirar Cabo Verde de uma quase total bancarrota trazida por 15 “dolorosos anos” do governo de esquerda.

Por sua vez, os partidos da Oposição, com destaque para o maior, vão criticar duramente a governação, dizendo, sucintamente, que o país não vai bem e que o Governo falhou para com os cabo-verdianos, não cumprindo o grosso das suas promessas eleitorais e das medidas constantes do seu Programa de governação. Certamente, a Oposição irá reiterar as suas já conhecidas críticas sobre as duras condições de vida dos cabo-verdianos e a insensibilidade social do Governo, os graves problemas existentes ao nível dos transportes marítimos e aéreos, a gritante situação de insegurança existente no país e a falta de transparência e lisura na gestão dos recursos públicos, trazendo à baila os casos mais recentes que envolvem os fundos do turismo e do ambiente.

Conforme tem sido regra no debate político em Cabo Verde, antecipo que não vamos ter um plenário em que haja um clima saudável, um debate no dissenso onde todos os sujeitos possam, de facto, focar naquilo que é mais importante e naquilo que sirva os cabo-verdianos. Em vez disso, fruto de uma cultura democrática e político-institucional muito pobre, e de uma forte crispação política entre os diferentes partidos, vamos ter um debate político muito tenso, muito fulanizado e pouco elevado. 

Naturalmente, que o retrato de um país que vai bem e onde os mais desfavorecidos têm uma superproteção do Estado não é o país real, mas é o país que a Situação tão bem sabe vender e que lhe rendeu em 2021 mais uma maioria absoluta, para a qual contou com forte apoio da comunicação política. Na verdade, as técnicas de comunicação levam a criar espuma mediática e quem está no poder cria essa espuma mediática, por um lado, para escamotear o que não está bem e, por outro lado, para que não sejam discutidas as grandes questões, sobretudo estruturais, que preocupam o país, mas que a Situação não quer atacar.

E não é por acaso que o partido que está no poder tem um batalhão de membros a produzir notícias, sobretudo para as redes sociais, notícias essas, umas convenientes, mas outras, autênticos insultos e difamação sobre os opositores ou cidadãos que exercem cívica e educadamente a sua cidadania. Penso que nunca houve, do lado governamental, uma central de comunicação tão eficazmente organizada como é atualmente o caso. 

Uma Nação que falha e sem ímpeto reformista

Como escrevi num dos meus últimos artigos, intitulado “Porque falha Cabo Verde: uma democracia sofrível e muito pouco meritocrática”, publicado na edição deste jornal, de 22 de junho pp., o nosso país ainda não dispõe, de facto, das chamadas “boas instituições” ou instituições indutoras do sucesso de um país. São instituições inclusivas e pluralistas que incluem a maioria da população na comunidade política e económica, onde todos tenham as mesmas oportunidades, criando incentivos para quem investe em si e no seu futuro. Tal qual dissera nesse artigo, as nossas instituições são, por ora, um misto de instituições inclusivas e de instituições extrativas, isto é, Cabo Verde é uma democracia sofrível e muito pouco meritória, o que constituí um forte entrave ao desenvolvimento do país. 

Com efeito, quando as instituições têm laivos de instituições extrativas, elas não são integralmente democráticas, fazendo com que, por exemplo, o Estado (Governo local e central) açambarque praticamente todas as esferas de atividade social, pública e económica e condicione a liberdade, particularmente de expressão e de opção política dos cidadãos. Além disso, não há uma clara aposta no mérito, na livre iniciativa e nos mecanismos centrais de regulação positiva e independente, que evitem o condicionamento da liberdade, da ação individual e da atividade económica e social, e promovam motivação, inovação, equidade e competitividade. 

Sem igualdade de oportunidades e reconhecimento e valorização do mérito, o desempenho das instituições públicas e a qualidade dos serviços são negativamente impactados pela falta ou inadequada qualificação profissional dos “boys” partidários, dos familiares e amigos pessoais dos detentores do poder (nepotismo), que são escolhidos a dedo para o desempenho de todos os cargos com maior ou menor responsabilidade e sensibilidade. Especialmente nos últimos anos, Cabo Verde vem tornando-se em um país cujo aparelho do Estado é cada vez mais ocupado por pessoas mal preparadas, uma classe dirigente que tem uma ambição desmedida em alcançar o poder e exercer cargos públicos para se servir, e para servir os seus, e recolher as respetivas benesses. 

Por fim, quando as instituições não são totalmente inclusivas, também os ganhos económicos se restringem a uma pequena elite próxima do poder, distribuindo a riqueza “para cima” e não “para baixo”, tornando os pobres cada vez mais pobres, quando se compara os seus rendimentos com os rendimentos dessa elite. Por isso, não é de se estranhar que o fosso entre a elite e os pobres vem-se aumentando crescentemente, com todas as consequências daí advenientes.

Nos últimos anos, o Estado administrativo vem se tornando cada vez mais gordo, com macro e microestruturas empoladas em quase todos os ministérios. Enfim, uma máquina pesada que impunha reestruturações e reformas, otimizando processos, estruturas e efetivos. Mas tal não vem acontecendo. Em vez disso, criam-se mais estruturas, põem-se mais pessoas e mais meios em cima dos problemas já existentes. E, obviamente, isso cria um problema, quer de pressão de despesa, quer de pressão de recursos humanos, quando era absolutamente necessário reduzir a despesa corrente e a dívida pública. A título de exemplo, refira-se que, segundo dados do BCV, a despesa corrente sofreu um fortíssimo aumento entre 2015 e 2022, passando de 41.040 milhões de escudos (ecv) para 58.146 milhões ecv, um incremento de cerca de 42%. Em parte, devido a esse aumento, nesse mesmo período, o stock oficial de dívida pública passou de cerca de 200.000 milhões ecv para 295.444 milhões ecv, um aumento de cerca de 48%. Não fosse uma boa parte da dívida criativamente disfarçada, o stock seria muito superior. Os atuais níveis de crescimento de despesa corrente e de dívida pública são, a todos os títulos, insustentáveis.

Um país com pouca sensibilidade social, onde cerca de uma em cada três pessoas vive na situação de pobreza e de carência alimentar

Nestes últimos sete anos, praticamente não tem havido progresso na situação dos pobres e dos muito pobres e a culpa não é só da pandemia, que só chegou em 2020. Segundo o INE, em 2022 a taxa de pobreza situou-se em 28,1%. Por outro, o INE estima que em 2020, 13,1% da população em Cabo Verde vivia abaixo da linha da pobreza internacional. 

Note-se que são considerados pobres aqueles que, em 2015, viviam em agregados familiares com consumo médio anual por pessoa abaixo do limiar da pobreza, fixado, no meio urbano, no valor de 95.461 ecv (7.955 ecv/mês) e, no meio rural, no valor de 81.710 ecv (6.809 ecv/mês). Já para a pobreza extrema, o INE considerou a proporção da população que vivia com menos de 1,9 dólar dos EUA (cerca de 190 ecv) por dia.

Acrescente-se que os valores suprarreferidos foram determinados em 2015 e resultaram do terceiro e, até à presente data, último IDRF, realizado nesse mesmo ano, pelo que se encontram totalmente desfasados da realidade de hoje. Pois, com tais valores compra-se, atualmente, muito menos bens e serviços essenciais do que se comprava em 2015, devido à inflação média anual acumulada (IMA) de 2015 a 2022, superior a 12%, mas sobretudo à IMA acumulada do índice referente aos produtos alimentares não transformados e às bebidas não alcoólicas, superior a 20%, penalizando fortemente o poder de compra das famílias mais vulneráveis que gastam uma parte maior das verbas disponíveis ao consumo desses bens básicos. 

Daí, não é de se estranhar que, face à forte erosão do poder de compra das famílias, particularmente das mais desfavorecidas, uma vez que não houve compensações para a brutal subida do índice de preços no consumidor ocorrida nos últimos dois anos, 17% da população cabo-verdiana (81.000 pessoas) vive sob pressão alimentar, cerca de 8% (pouco mais de 40 mil pessoas) já na fase de crise alimentar (fase 3, insuficiência alimentar aguda) e quase 1% (cerca de 5.000 pessoas) na fase de emergência alimentar. Esta informação foi avançada à imprensa pelo ministro da Agricultura e Ambiente, Gilberto Silva, à margem da cerimónia de abertura da X reunião do CNSAN, realizada no dia 21 de junho, pp.

 Ainda, de acordo com o ministro, os dados mostram que 32% das famílias cabo-verdianas ainda não tem o acesso financeiro suficiente, 10% da população sofre de desnutrição crónica.

E tal qual escrevemos num outro artigo, paradoxalmente, a inflação alta que tem sido um tormento para os cabo-verdianos, tem sido muito benéfica para o Tesouro. Na verdade, o Estado não tem propriamente razões de queixa, na medida em que subida generalizada dos preços está a resultar na arrecadação de receitas fiscais e contributivas extraordinárias para os cofres públicos. Ou seja, o Governo está a lucrar fortemente com a inflação alta.

Pelos cálculos feitos, estimo que cerca de 30% do aumento das receitas fiscais, em 2022, e 40%, nos primeiros quatro meses de 2023, resulta da inflação elevada e da inflação em cima de inflação elevada. A inflação deu em 2022 e vem dando em 2023 “jackpot” de milhões de milhares de ecv ao Governo.

Com esse “jackpot”, o Governo devia proteger, sobretudo, os mais desfavorecidos dos efeitos dos preços elevados, que incidem sobre os bens essenciais, nomeadamente a alimentação. Ou seja, devia devolver parte dessas receitas fiscais extraordinárias às pessoas que estão a viver na situação de extrema pobreza e àquelas que sofrem com a penúria alimentar, sob pena de estar a cometer uma imoralidade. 

É uma obrigação do Estado fazê-lo, através de medidas de transferência de rendimentos compensatórios mais abrangentes e vigorosas a essas famílias mais vulneráveis. Mas, em vez disso, o Governo, praticamente, já acabou com todas as medidas de mitigação da crise inflacionista implementadas em 2022, não tendo tomado uma única medida para compensar o agravamento da deterioração do poder de compra em 2023, apesar de reiteradas promessas feitas. 

Debate sobre o Estado da Nação será um misto de doce mentira e de dura verdade

Por tudo o exposto, podemos dizer que vamos assistir, no debate sobre o Estado da Nação, um misto de doce mentira e de dura verdade. 

A Situação, em jeito de doce mentira, vai dizer-nos que está quase tudo bem. E o que não está bem, vai ficar bem. Será dito e repetido até à exaustão: i) que a economia cabo-verdiana atingiu um recorde histórico de crescimento em 2022 e que vai continuar a crescer acima da média dos países da África subsaariana; ii) que vai continuar a haver melhorias sociais através de aumentos dos rendimentos trazidos por este Governo; e iii) que haverá medidas de política e propostas concretas e clara de reforma para solucionar os problemas ainda existentes, particularmente nas áreas dos transportes marítimos e aéreos. Tudo isso com o intuito de deixar os cabo-verdianos descansados e esperançosos, e de transmitir, ainda que de forma implícita, a ideia de que há um plano, ainda por conhecer, cuja concretização reforçará a imagem de que Cabo Verde está sendo governado por uma liderança política com uma clara visão para o país com um espírito. 

Já a realidade, sob a forma de dura verdade, mostra-nos que os problemas existentes continuam a existir e sugere que continuarão a agravar-se, na medida em que Cabo Verde tem pela frente sérios desafios, que estão entre si relacionados: políticos, económicos e socias. Estes desafios só poderiam ser resolvidos com uma liderança política inclusiva e clarividente, que, em diálogo com todos, promovesse a implementação das necessárias reformas estruturais – políticas, institucionais e económicas – de que o país tanto precisa, visando, a médio e longo prazo: (i) dotar Cabo Verde das chamadas “boas instituições”, (ii) a diversificação da economia, e (iii) uma redução significativa da despesa de funcionamento do Estado e da dívida pública. Ou seja, uma liderança que enfrenta firmemente os problemas estruturais do país, que são graves, ao contrário da leveza e da falta de visão que, muitas vezes, tem caraterizado a vida política em Cabo Verde. 

Julgo que faz muita falta aos nossos políticos, mormente aos que nos governam, uma postura de humildade e de diálogo, onde prevalecem posições claras e transparentes, soluções e propostas de soluções realistas que vão ao encontro dos desafios do país, presentes e futuros. 

Infelizmente, o partido que atualmente governa Cabo Verde não tem tido a postura e atitude certa neste sentido. Por ter certos “tiques” autoritários e ser arrogante, não é um partido que dialoga e que procura, juntamente com outros, encontrar tal visão que faz tanta falta a este país. 

Praia, 09 de julho de 2023

*Doutor em Economia

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