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Sociedade

Gémeos supostamente violados pelo pai: Caso levanta questões sobre utilidade das salas de escutas

O recente caso em que uma mãe denuncia que os seus dois filhos menores, gémeos, foram molestados sexualmente pelo próprio pai, suscita questionamentos sobre a usabilidade das salas de escutas, recentemente inauguradas pela ministra Joana Rosa. Isso após a juíza informar em despacho que não havia sala preparada nem equipa para ouvir os menores, daí autorizar o pai a receber os filhos em visita.  Em defesa da juíza que decidiu o caso, o Conselho Superior da Magistratura Judicial é acusado de faltar com a verdade.

Sob o argumento apontado, a juíza Sara Ferreira, do Tribunal da Comarca da Praia, autorizou que os dois menores, uma menina e um menino, gémeos, de cinco anos, fossem passar um fim-de-semana por mês com o pai. Isto apesar da denúncia de os mesmos terem sido molestados sexualmente pelo progenitor, nas férias do ano passado, facto que levou a mãe criticar a falta de actuação da Justiça.  

Pessoas da sociedade civil criticaram o argumento da juíza relembrando que a ministra da Justiça, Joana Rosa, inaugurou em Maio de 2023 uma sala de escuta para crianças vítimas de violência sexual na cidade da Praia, parte do projecto “Justiça amiga da criança”, financiado pela Embaixada dos EUA. 

Na altura, a ministra destacou o compromisso do governo com a proteção infantil e a importância da continuidade do projecto, sugerindo a sua expansão às ilhas do Fogo e Santo Antão, onde os índices de criminalidade são apreciáveis. 

Entretanto, diante da celeuma que o caso dos dois menores gerou, sabe-se que as crianças vão ser ouvidas agora, neste mês de Setembro, facto que satisfaz as pessoas que têm estado na linha da frente de apoio à mãe das supostas vítimas, mas, mesmo assim, surgem questionamentos.

Entretanto há questionamentos sobre o timing dessa decisão. Um deles é saber “como que as crianças são ouvidas apenas um ano depois? “Isso quando sabemos que a noção de tempo da criança é diferente de um adulto. E, ao fazer isso, vão fazer, um ano depois, as coitadinhas reviverem tudo que passaram. Uma justiça que tarda não é justiça”, lamentou indignada uma fonte do A NAÇÃO. 

O caso

Segundo a mãe dos menores, cuja identidade preservamos, há mais de um ano que ela luta na Justiça para tentar provar que os dois filhos foram molestados sexualmente desde que tinham quatro anos, crime supostamente cometido pelo pai das mesmas, quando nas férias do ano passado passaram todo o mês de Agosto com o progenitor. 

Natural de Santiago, antiga emigrante na Holanda, onde cresceu, daí a sua dificuldade com o crioulo, a mesma cidadã relatou que tanto a menina como o menino apresentam sinais de agressão nos órgãos genitais, mas que mesmo diante de várias denúncias e queixa crime no tribunal, ela é obrigada a entregar os filhos para passarem as férias na casa do pai, que vive fora da ilha de Santiago, mais concretamente em São Vicente. 

Esta mãe afirma que a menina tem cicatrizes de faca na vagina e que o menino tem uma abertura anormal no ânus e que há um ano as crianças se queixam de dores nos órgãos genitais e gritam muito durante a noite. Esta mulher declara, ainda, que as crianças fizeram exames no Instituto Médico Legal, mas que, estranhamente, nem ela, nem a sua advogada até hoje tiveram acesso aos relatórios.

O desespero dessa mãe é ainda maior, como confessa, porquanto, apesar de várias denúncias de abuso sexual contra os menores e crimes de violência baseada no género, com a sua dificuldade em fazer-se entender em crioulo, o pai dos filhos conseguiu na justiça o direito de passar as férias com as crianças.

Cumprimento forçado de ordem judicial e manifestação 

Na manhã da última sexta-feira, 31, a mãe das crianças deslocou-se à delegação do ICCA na zona de Tira Chapéu, na Praia, para entregar as crianças ao pai, como ordenou a justiça, mas este não compareceu. 

Entretanto, em solidariedade, várias pessoas, sobretudo mulheres, realizaram uma manifestação em frente à delegação do ICCA, exigindo medidas mais sérias e urgentes para a proteção das crianças.  

 “Nós estamos aqui para mostrar o nosso desagrado, nossa revolta, nosso descontentamento e a nossa descrença com a justiça cabo-verdiana e com as instituições que dizem que estão na promoção e defesa dos direitos das crianças”, disse Marilene Pereira, uma das manifestantes. 

E precisou: “Há dois anos que essa mãe luta na justiça pela protecção dos filhos. Essa senhora está à beira da loucura. Tirando a Provedoria da Justiça, nenhuma instituição de direitos humanos, nenhuma instituição de defesa das mulheres, nenhuma das instituições que se multiplicam, no Facebook, veio em defesa dessa mulher. Olha quantas pessoas que estão aqui. Quer dizer, criança é prioridade? Não. Criança em Cabo Verde não é prioridade”.  

Após mais de uma hora de espera, ficou-se a saber que afinal o pai das crianças, residente em São Vicente, de nacionalidade estrangeira, não compareceu para tomar as crianças. A própria delegação do ICCA, em Tira Chapéu, parecia estar despreparada para o acto de entrega dos menores. 

ICCA diz que não pode fazer nada 

Sobre o caso, o Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA) afirmou-se de mãos atadas, porquanto não se pode sobrepor às decisões judiciais, no caso de um pai que, acusado de abuso sexual de duas crianças, obteve judicialmente o direito de passar as férias com elas. 

O ICCA também esclareceu que, em cumprimento às suas atribuições, encaminhou as denúncias de abuso para as instâncias competentes e recomendou avaliações psicológicas e forenses das crianças, além de propor medidas de apoio à mãe, que, segundo disse, foram recusadas. 

A instituição enfatizou que continuará a acompanhar o caso, sempre agindo conforme a lei e visando o “superior interesse das crianças”, ressaltando que o processo de abuso continua em andamento que há possibilidade de recurso judicial contra decisões contestadas.

CSMJ pede contenção à sociedade civil

O Conselho Superior de Magistratura Judicial (CSMJ), por seu turno, emitiu um comunicado pedindo contenção na emissão de opiniões públicas sobre o caso de suposto abuso sexual envolvendo um pai e os seus dois filhos gémeos, destacando que o processo continua em andamento.

O CSMJ confirmou que o processo de divórcio litigioso e a regulação do poder paternal estão pendentes no Tribunal da Comarca da Praia. O comunicado esclarece que, após a denúncia da mãe, uma avaliação psicológica forense não encontrou indícios de abuso sexual, levando à retomada do regime provisório de visitas ao pai. No entanto, um relatório de uma psicóloga privada, apresentado pela mãe, sugere o contrário, complicando ainda mais o caso. 

O CSMJ sublinhou que, até o momento, não há provas conclusivas de abuso sexual nos autos, reforçando o princípio da presunção de inocência do pai. O comunicado critica a exposição pública do caso nas redes sociais, recomendando que quaisquer medidas cautelares sejam solicitadas formalmente no processo criminal em andamento, em vez de serem debatidas publicamente. 

Branquear a situação 

O comunicado do CSMJ foi recebido com descrença por uma das manifestantes, que o considerou uma tentativa de “branquear” a situação. “Em vez de mandar apurar o que realmente se está a passar, o CSMJ mostra-se mais preocupado em branquear o comportamento do tribunal neste caso”.

Por exemplo, diz a mesma fonte, “o comunicado não explica como é que a juíza alega não haver sala de escuta, quando essa sala existe desde Maio do ano passado. Também não diz por que razão, diante das dúvidas que o caso em si suscita, opta-se por permitir que as crianças visitem o pai, quando a lei de proteção do menor e o bom senso indicam o contrário”. 

Conhecedora do caso a nossa fonte alega que o CSMJ nem sequer se deu ao trabalho de verificar qual a situação do casal, dizendo que o processo de divórcio se encontra em curso, quando, na verdade, o caso já foi decidido. 

“Além disso, é um relatório do próprio ICCA, que a mãe só veio a ter acesso depois da intervenção da Provedoria da Justiça, que também deixa entender a ocorrência de abuso sexual. Infelizmente, se não fosse a nossa manifestação, as crianças teriam sido entregues ao pai, na sexta-feira passada. Diante da nossa mobilização, ele não teve coragem de comparecer para tomar as crianças. Isto há-de ter um significado, caso o CSMJ quiser apreciar novamente o assunto”, alega. 

Geremias S. Furtado 

Publicado na edição nº 888 do Jornal A Nação, de 05 de setembro de 2024

 

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