Por: José Mendonça Monteiro*
As premiações musicais, tal como as conhecemos hoje, emergiram no século XX, inicialmente nos Estados Unidos, como uma tentativa de reconhecer e celebrar a excelência artística e técnica na indústria musical. Desde os Grammys, fundados em 1959, até os mais recentes MTV Music Awards, o intuito subjacente sempre foi enaltecer o mérito e o talento. No entanto, à medida que o tempo avançou, as fronteiras entre arte, cultura e mercado tornaram-se indistintas, transformando muitos destes eventos em palcos que, por vezes, promovem mais a mediocridade do que a verdadeira arte musical.
A música, ao longo da história, tem sido uma das formas mais eficazes de comunicação cultural. Ela é capaz de transportar valores, tradições, histórias e sentimentos de uma geração para outra. Em qualquer nação, as canções populares desempenham um papel crucial na promoção da identidade cultural, sendo simultaneamente um espelho e um veículo das aspirações de um povo. Através da música, expressa-se a alma coletiva de uma sociedade, seja através de cânticos tradicionais ou de melodias modernas que refletem as nuances do tempo presente.
Em Cabo Verde, onde a música tem um lugar central na vida social e cultural, eventos de premiação musical tornaram-se comuns. Estes eventos, que começaram como uma celebração da rica herança musical do país, têm progressivamente sofrido uma transformação preocupante. Se antes exaltavam-se temas que abordavam a saudade, a luta e a esperança, agora, com frequência, celebram-se músicas cujo conteúdo é questionável, que pouco ou nada contribuem para a edificação da cultura cabo-verdiana.
A nomeação e consagração de músicas de temas vazios e sem substância, que promovem putrefação social como o álcool, a droga, a prostituição e a irresponsabilidade juvenil, são sinais alarmantes. Mais grave ainda é a nomeação de canções que incitam ódio, racismo, violência e rivalidades territoriais, perpetuando estereótipos e alimentando divisões na sociedade. Cada vez que um evento de premiação musical atribui espaço a estes conteúdos, está-se a contribuir, de forma direta, para a degradação social e cultural do país. Mais do que uma celebração do talento, esses eventos tornam-se cúmplices na promoção de valores destrutivos e na construção de um futuro incerto para as gerações vindouras.
A responsabilidade de selecionar e premiar a música que se ouve nos nossos países não é uma tarefa que deva ser tomada de ânimo leve. Deixar que as músicas sem conteúdo substancial ocupem os palcos dos Music Awards é, em última análise, comprometer a qualidade da cultura que passaremos aos nossos filhos. Não há como ignorar que, ao nomear estas canções, estes eventos estão a abrir caminho para uma sociedade onde o superficial é mais valorizado do que o profundo, onde o efémero se sobrepõe ao eterno.
Neste contexto, é imperativo que o Estado, as empresas e as instituições que verdadeiramente se comprometem com a construção de uma sociedade saudável, consciente e coesa, reconsiderem o apoio financeiro e logístico a eventos desta natureza. Patrocinar e promover tais projetos é, em última instância, patrocinar a decadência cultural e social, algo que deveria ser evitado a todo o custo.
RAP: De canal de inclusão para o canal daåß ilusão
Nesta senda, tomemos como exemplo perfeito o rap e alguns dos seus defensores. O rap, enquanto expressão musical, surgiu como um grito de resistência, nascido nos guetos americanos, onde a marginalização, o racismo e a pobreza eram o pano de fundo. O objetivo inicial do rap clássico era dar voz aos silenciados, abordando temas de problemas sociais que as políticas públicas insistiam em ignorar. Os rappers eram cronistas urbanos, relatando a realidade nua e crua, muitas vezes trazendo à tona questões que as autoridades preferiam varrer para debaixo do tapete. Em algumas ocasiões, a força das palavras cantadas era tamanha que obrigava os poderes estabelecidos a agir, solucionando problemas que, até então, permaneciam negligenciados. Contudo, nos dias de hoje, o rap parece ter perdido parte dessa chama. O sistema, percebendo o poder deste estilo musical, passou a comprar as almas de artistas e defensores do rap, aliciando-os com fama, dinheiro e influência, de modo que muitos já não conseguem mais trazer à tona os temas de outrora ou, quando o fazem, demoram anos para lançar uma nova crítica.
Além desta técnica de cooptação utilizada pelo sistema, as novas gerações de rappers enfrentam outro desafio: a manipulação que altera tanto a forma como o conteúdo do rap. A transição do rap clássico para subgêneros como o trap e o drill ilustra esta transformação. Se antes os jovens usavam o rap como uma arma para enfrentar o sistema, denunciando a aflição de uma sociedade que clamava por justiça social, hoje, assistimos a uma alteração na narrativa.
O sistema, consciente do poder do rap, promoveu uma mudança de foco. Agora, temas que outrora incitavam a luta pela igualdade foram substituídos por letras que exaltam a droga, o ódio, o álcool, as gangues e a prostituição. Estes subgêneros, como o drill, são muitas vezes financiados e incentivados pelas mesmas estruturas que deveriam ser alvo de críticas, oferecendo aos jovens tudo o que precisam para desviar a atenção das mazelas desses sistemas e sociais que antes combatiam.
O Capitão Ibrahim Traoré, líder interino de Burkina Faso, é um exemplo de como o poder público pode e deve intervir para salvaguardar a cultura e os valores de um país. Ao proferir a frase: “Não vamos dar espaço para ‘prostituição’ e alcoolismo no País, queremos jovens com capacidade de segurar o País”, Traoré não apenas afirmou o seu compromisso com o futuro da juventude burkinabê, mas também demonstrou a coragem necessária para enfrentar as tendências que ameaçam a integridade cultural da nação.
Inspirado por esta visão, ele implementou uma lei que proíbe a produção e difusão de músicas medíocres no país. Quem ousar promover conteúdos degradantes, sejam eles músicos ou influenciadores digitais que expõem os seus corpos e promovem valores negativos nas redes sociais, enfrenta até dois anos de prisão e uma multa de 3 milhões de FCFA. Esta medida, embora severa, é uma tentativa audaciosa de proteger a juventude e garantir que o país mantenha uma cultura que inspira orgulho e respeito.
A questão que se coloca é: será que estamos preparados para adotar medidas semelhantes em Cabo Verde? Será que temos a coragem de pôr fim à promoção de conteúdos musicais que, longe de enriquecer a nossa cultura, a corroem? Se aspiramos a um futuro em que a nossa juventude possa crescer num ambiente cultural saudável, é essencial que façamos escolhas difíceis, mas necessárias. Isso inclui reavaliar o que consideramos como música premiável e reconhecer que a cultura de um país é tão rica quanto os valores que promove.
A promoção da mediocridade musical nos nossos Music Awards não pode continuar a ser ignorada. Se queremos jovens capazes de segurar o futuro da nossa nação, é fundamental que as músicas que premiamos reflitam os valores que desejamos ver perpetuados. Caso contrário, estaremos a hipotecar o futuro cultural de Cabo Verde, abrindo espaço para uma degradação que, uma vez iniciada, será difícil de reverter.
Assim, a solução passa por um compromisso renovado, onde o mérito não se mede apenas pela popularidade, mas sim pelo impacto cultural e social positivo. Somente assim poderemos assegurar que os Music Awards voltem a ser o que deveriam ser: uma celebração da arte, da cultura e dos valores que unem e elevam uma nação.
*Licenciado em Direito
Técnico de Segurança Pública
Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processual Penal militar
In Estados Unidos da América
