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O Estado no contexto dos riscos globais : entre a excepção e a emancipação

Por: Odair Barros Varela*

“perspectiva: muitos vaticinam a necessidade de refundação dos estados para responder aos novos desafios lançados pela pandemia Covid-19, independentemente de concordar ou não com o conceito de refundação, queremos perceber que Estado pode-se delinear para Cabo Verde neste momento de enfrentar os desafios lançados pelo novo panorama mundial. Nos campos social, económico, cultural, ambiental, etc.”

Quando se fala na possibilidade de “refundação” dos Estados, antes de mais é preciso pontuar sobre que tipo de Estado está-se a referir. O modelo de Estado-nação de origem ocidental, e que é hegemónico graças ao colonialismo europeu, não constitui o único modelo estatal e tem estado sob fortes críticas em muitos espaços ex-coloniais onde se defende, por exemplo, o reconhecimento de existência e a implementação de outros tipos de estatalidades.

Eu discuto estas e outras questões no meu último livro Crítica da Razão Estatal. Tendo em consideração de que não é possível discorrer conceptualmente aqui sobre o Estado creio que vale a pena referir que, independentemente do modelo estatal em causa, a pandemia do COVID-19 tanto pode conduzir a processos endógenos e emancipatórios de “refundação” estatal como ao incremento do autoritarismo e fascismo Estatal.

Estados falhados fortes

No que concerne ao último caso, a evidência contemporânea primacial constitui a presença cada vez maior de estados de exceção relacionados com os riscos. Devido ao impacto dos riscos globais (pandemias, crises ambientais, ecológicas, migratórias, etc.) os Estados, mesmo no Ocidente, estão mais autoritários mas são ineficientes quando se trata de lidar com as diferentes ameaças e perigos globais, constituindo-se como “Estados falhados fortes” (Beck, 2008: 79). Sinteticamente, o conceito de “estado de exceção” foi trabalhado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (2010) no qual este é caracterizado por uma suspensão temporária do ordenamento jurídico, por força de uma decisão soberana.

Entretanto, o estado de excepção (ou na linguagem jurídica comum, “estado de emergência”) tem se tornado permanente, excepção feita regra, tendo como justificação a existência e a possibilidade de ocorrência de riscos globais como a COVID 19. Ulrich Beck (2008: 137) fundamenta muito bem ao afirmar que se assiste, assim, ao fim dos seguros privados e que, em última instância, é sempre o Estado o garante final do valor dos bens e das vidas das pessoas. O Estado assume, assim, um papel central num tempo em que os riscos são, na sua maioria, de cariz global.

Em consequência, estes riscos globais podem conduzir ao aumento da degradação das democracias representativas de cunho liberal em África que começa a ocorrer em simultâneo com a importação do modelo democrático liberal no início da década de 90 do século XX após o final da Guerra Fria. Portanto, o aumento do autoritarismo e do fascismo estatal a nível mundial constitui o espelho de uma profunda crise de representação e da redução da demodiversidade (diversidade de formas, modelos ou sistemas democráticos) do continente africano, provocada pelo facto de os Estados ocidentais, que dominam o actual sistema internacional, terem continuado a patrocinar o jogo democrático liberal considerando que constitui a melhor via para se atingir aquilo que actualmente se apelida de “boa governação”. Contudo, esta não passa da promoção de uma democracia de “baixa intensidade”, desejada não só para mitigar as tensões políticas e sociais produzidas pelo anti-democrático e elitista status quo, mas também para asfixiar e suprimir as aspirações a mais participação democrática. Por isso, actualmente, a democracia representativa liberal, para além de suscitar muitas críticas nos próprios Estados ocidentais, torna-se num instrumento de expansão da governação global neoliberal, mediante um dos seus “consensos” que é o “Estado de direito democrático”.

A boa governação

Em síntese, actualmente os condicionalismos políticos – que traduzem-se usualmente na aplicação da fórmula da “democracia representativa” e da receita do “Estado de direito” que, ultimamente, têm surgido sob o signo da “boa governação” – constituem os principais instrumentos de “coerção” utilizados pelos Estado ocidentais em África apesar de articulados com os condicionalismos económicos que ditavam as regras nas décadas de 80 e 90 do século passado. A “boa governação”, cujo significado pode ser bastante relativo, remete-nos para considerações morais que podem estar impregnadas de laivos e tentações neocoloniais sub-reptícias. Sobre a referida fórmula, é de notar, paradoxalmente, que a maioria das transições políticas africanas consideradas de sucesso não teve como base processos ditos democráticos.

Apesar disso, algumas questões continuam a ser erroneamente colocadas, tais como, por exemplo, a forma de reduzir o tempo necessário para fazer a transição para a “democracia”, ou a questão de determinar os modos de aumentar as possibilidades da democracia ter sucesso. Tendo em conta o que foi dito, é inteiramente normal que as reivindicações sobre a “boa governação”, em vez de dar mais força aos Estados africanos, os encerre cada vez mais num ciclo vicioso de insucesso e dependência, apesar da chamada “ajuda” ao desenvolvimento estar, paradoxalmente, a diminuir.

No que diz respeito à possibilidade da pandemia do COVID-19 incentivar à emergência ou consolidação de processos endógenos e emancipatórios de “refundação” estatal, a minha visão, baseada em pesquisas de mais de uma década, sustenta que uma das formas de pôr cobro à perda da demodiversidade (o facto de o número de votantes estar a entrar em declínio e o cepticismo em relação aos representantes eleitos estar a aumentar, e de a maioria dos cidadãos africanos confiar mais nos líderes religiosos, no exército e nos líderes tradicionais do oque nos representantes eleitos, constituem provas evidentes desta perda) passa por resgatar e reconhecer as formas endógenas de democracia em África que vão para além das versões eurocêntricas e dominantes da democracia socialista e da democracia liberal. O referido resgate e legitimação implica, em primeiro lugar um re-rastreamento das origens da democracia. Ao contrário do que defende a historiografia de cariz ocidental, que localiza a origem da democracia na Grécia antiga, eu sigo a linha da historiografia crítica africana que é apologista de que o espaço que com a colonização europeia passou a ser chamada de “África” constitui o berço da democracia. Isto porque a historiografia ocidental ignora, por exemplo, que a estrutura interna da “democracia ateniense” era muito semelhante ao sistema da Sais (ou Sa el-Hagar), a cidade capital do Antigo Egipto durante a dinastia XXIV e das repúblicas oligárquicas comerciais de Biblos ou Sídon, que não aceitavam a monarquia. O historiador norte-americano Martin Bernal, nos volumes da obra Atenas Negra (1987) é um dos defensores desta visão.

 

“(…) o aumento do autoritarismo e do fascismo estatal a nível mundial constitui o espelho de uma profunda crise de representação e da redução da demodiversidade (diversidade de formas, modelos ou sistemas democráticos) do continente africano…”

 

De acordo com um outro historiador e filósofo argentino-mexicano, Enrique Dussel (2007:11), uma evidência, entre muitos outros, por exemplo, de que o antigo Egipto constitui um dos berços principais da democracia reside na etimologia da própria palavra “democracia”. Segundo Dussel, quando se fala em “demo-cracia”, o demos na língua egípcia significa “aldeia”, não sendo uma palavra de origem grega nem da suposta língua indo-europeia. Com esse re-rastreamento está-se a “des-truir” e desconstruir uma das palavras “mais técnicas, mais fundamentais da política grega”. O resgate simbólico da “aldeia”, enquanto espaço democrático, é fundamental para o futuro da democracia africana. E esta recuperação implica também o resgate e legitimação dos chamados “direitos da tradição” (os ancestrais) e dos “direitos da posteridade” (as futuras crianças), alicerces fundamentais das formas de “governo consensual” sobre as quais repousavam as antigas sociedades africanas.

Em relação aos direitos da tradição, o antigo presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, apresenta-nos a imagem dos “anciãos sentados sobre a grande árvore e falando, falando até quando julgassem ideal”. Para ele, a doutrina do consenso “formava um elo entre o presente e, simultaneamente, o pretérito e o porvir.” E constituía um “guia a conduzir a autêntica vontade geral, a verdade”. Ele remata afirmando: “Nós não necessitamos que nos ensinem a democracia, tanto quanto não nos falta ensinamento sobre o socialismo e [liberalismo]. Ambos estão enraizados em nosso passado, na sociedade tradicional da qual somos o fruto” (2010: 558-9). De acordo com esta visão, com o advento da democracia liberal ocidental os “direitos da tradição” (os ancestrais) e dos “direitos da posteridade” (as futuras crianças) foram banidos em detrimentos dos direitos instrumentais, um novo princípio acerca do “governo consensual”.

A organização das eleições gerais tornou-se um direito, o direito instrumental, cujo exercício deveria permitir o governo consensual. As eleições organizadas segundo o modelo ocidental representavam forçosamente uma disputa. Na África pós-colonial, a passagem de uma cultura baseada no consenso para uma cultura sob a insígnia da disputa revelou-se catastrófica na medida em que sendo um elemento estranho à tradição africana, a disputa política transformou-se rapidamente em conflito político violento. Além disso, os direitos instrumentais ficaram subordinados ao princípio neo-ocidental segundo o qual, em ambiente de eleições gerais periódicas, “o vencedor ganha tudo”, traduzindo-se na marginalização e criminalização da oposição. Em síntese, os actores e movimentos que lutam pelo reconhecimento e legitimação por formas endógenas de modelos estatais e de democracia em África devem procurar, a meu ver, integrar na sua cosmovisão o respeito pelos ancestrais (gerações anteriores), pela natureza, saúde e meio ambiente (o que contrasta visivelmente a democracia neo-liberal capitalista) e pelas gerações vindouras. Por outras palavras, eu defendo o resgate da demodiversidade como uma das vias para se combater os riscos globais como a COVID-19.

O caso cabo-verdiano

No que toca particularmente a Cabo Verde, devido a processos próprios que não são possíveis de explicar agora neste artigo, a introdução da disputa política na década de 90 do século XX deu, consequentemente, origens a conflitos políticos mas estes não atingiram um elevado grau que resvalasse para um conflito violento ou numa guerra civil, o que se traduziu num ganho assinalável para o nosso regime político.

Contudo, para além ser afectada tal como os restantes Estados africanos e do mundo pela perda da demodiversidade, a principal “doença” crónica do sistema política ilhéu constitui aquilo que denomino de (bi)partidite aguda. Apesar de constitucionalmente o sistema democrático ter por base o sistema de partidos (configurando-se na prática uma “democracia de partidos”), a meu ver é fundamental proceder-se a uma alteração desse figurino na medida em que apesar de serem muito importantes na sua engrenagem, os partidos políticos não constituem os principais, ou os únicos, motores de transformação social.

Para fazer face aos referidos riscos globais, como é o COVID-19, é preciso reconhecer a presença e dar cada vez mais espaço a outros actores políticos que se situam para além do espectro estatal institucional (o que vulgarmente se apelida de “sociedade civil” e seus protagonistas: ONG’s, associações, movimentos sociais, etc.), no sentido de se realmente “democratizar” a democracia, tornando-a cada vez menos elitista e formalista e cada vez mais participativa e inclusiva, almejando uma estrutura estatal que corporifica realmente a pluralidade.

* Politólogo e Internacionalista. Professor e Director Académico do Mestrado em Integração Regional Africana (MIRA) e do Mestrado em Relações Internacionais e Diplomacia Económica (RIDE) da Uni-CV.

Este artigo resulta do desafio lançado pelo A NAÇÃO a vários académicos sobre os 45 anos da independência de Cabo Verde. O título e os subtítulos do presente artigo são da responsabilidade do jornal.

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