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Cultura

Kriol Jazz “incerto”: Djô da Silva agastado com Câmara da Praia e Governo

A organização do Kriol Jazz Festival (KJF) lamenta o facto de ter que adiar a edição KJF 2022, prevista para a segunda semana de Abril, na cidade da Praia e para Junho na ilha do Sal. O promotor e responsável pelo evento, Djô da Silva, esclarece que a razão disso se deve a verbas prometidas e não disponibilizadas por dois dos principais patrocinadores: a Câmara Municipal da Praia (40%) e o Governo (10%), num orçamento global de 35 mil contos. Visada, a CMP apresenta as suas razões.

A organização do Kriol Jazz Festival, a cargo da Harmonia, empresa do produtor e empresário Djô da Silva, anunciou na passada sexta-feira, 04, o adiamento do evento, anualmente previsto para 7, 8 e 9 de Abril, e, eventualmente, também para Junho.

Para Djô da Silva, esse adiamento é “inteiramente alheio à vontade da produção”.

Djô da Silva desgastado com a situação 

Ainda na página oficial do KJF no Facebook, a organização desse evento faz saber que “as constantes alterações impostas, ao longo do último ano, nas medidas restritivas por parte das entidades competentes para o efeito, levaram a um posicionamento tardio dos patrocinadores e principais parceiros do festival, resultando que a menos de um mês da realização do KJF ainda estejamos a aguardar o cumprimento dos acordos assinados”.

Contactado pelo A NAÇÃO, Djô da Silva não só confirmou os motivos aduzidos, como deixou transparecer o seu desgosto com o desenrolar do processo, que lhe tem causado inúmero desgaste.

Como fez saber, apesar de todos os compromissos, o patrocinador principal do Kriol Jazz Festival (KJF) – a Câmara Municipal da Praia (CMP) – , até há poucos dias, não havia disponibilizado a verba prometida para a organização do Festival.

Câmara Municipal da Praia pediu adiamento do KJF

 “Foi a Câmara que pediu o adiamento do festival e cremos que é por falta de dinheiro. Desde Outubro de 2021 que estou a falar com a edilidade e tudo estava certo. Tínhamos data para receber as transferências do contrato e até ainda nada. Mudaram de vereadores e há 10 dias apareceu um novo com quem tivemos que retomar todas as negociações do zero. Mesmo assim, continuamos sem receber nada, faltando cerca de um mês para o festival”, conta.

Como diz também, adiar “em cima da hora” um evento como o KJF, cuja realização depende largamente da agenda dos artistas contratados, “não é nada fácil”.

“Há muitas consequências, entre elas, que artistas internacionais escolher para cabeça-de-cartaz, e que agora não sabemos se vão estar disponíveis no mês de Junho ou noutras datas”, aponta como exemplo.

Verba do Governo também por disponibilizar

Para além da CMP, parceiro principal do KJF que já vai na sua 12ª edição, Djô da Silva diz que o evento conta ainda com uma importante parte financeira do Governo, neste caso do Ministério da Cultura, que ainda não foi também disponibilizada.

“Não tendo nem os 40 % do orçamento da edilidade praiense nem os 10 % do Governo, fica complicado realizar o festival, cuja edição está orçada em 35 mil contos. Ou seja, sem a metade das verbas previstas, mesmo tendo outros patrocinadores, nomeadamente a CVTelecom, a Caixa Económica e a ASA, que sempre mostraram interesse em continuar com o festival, não vai ser possível”, afirma, realçando que a questão, mais uma vez, está ligada à “política”, com tudo o que isso tem de desgastante para quem trabalha com a cultura, como é o seu caso, com provas dadas.

“Mais uma vez a depender dos políticos”

“Nós, do sector da cultura, estamos cansados de sermos utilizados pelos políticos. Cada vez que o país muda de partido no poder, quer no Governo quer nas autarquias, os eventos sofrem com muitos problemas. Normalmente, aquele que vem não quer dar continuidade ao projecto lançado pelo seu antecessor, e as consequências nós é que as sofremos”, desabafa.

No caso presente, Djô da Silva não tem dúvidas: “Todo o problema do Kriol Jazz Festival vem da mudança política na Câmara Municipal da Praia”, dado que “a equipa de hoje não dá a mesma importância que a anterior dava a este evento”.

Sendo assim, aquele produtor lamenta o facto de “tudo” ser assim em Cabo Verde – “muita dependência política” – , conduta esta que considera um “retrocesso desnecessário”.

“Cada vez que há uma mudança política queremos acabar com tudo para começar de novo, do nosso jeito. Por isso, nunca temos algo que funciona como deve ser. Estamos cansados desta situação”, desabafa, “e é pena, um festival como a Kriol Jazz, com grande qualidade e muitos benefícios para o país, no sector da música e não só, passar por tudo isto”.

Risco de perda de prestígio conquistado

Diante dos constrangimentos, aquele produtor e empresário diz ter pensado devidamente a questão antes de decidir pelo adiamento do KJF, apesar do grande risco de o festival perder todo o prestígio que já alcançou quer em Cabo Verde, junto dos amantes do jazz e outros patrocinadores, quer dos músicos que passaram a reagir positivamente sempre que contactados para virem actuar em Cabo Verde.

“Eu passei, duas semanas antes de tomar a decisão de anular o festival, por muito estresse e sem dormir, a tentar uma solução que não fosse esta. Mas não é fácil. Se estivéssemos em um país com mais possibilidades, poderia recorrer ao público aumentando o valor dos bilhetes, sabendo que as pessoas haveriam de compreender e aderir. Mas, em Cabo Verde, infelizmente, a nossa economia não nos permite fazer isso, é por esta razão que um festival como o KJF vai sempre depender do apoio público, das edilidades, das empresas, das estações de rádio e televisão, e enquanto estivermos nessa condição estamos mal”, sublinha.

Perda do cachê  já pago e outros prejuízos

Entretanto, diante do adiamento, Djô da Silva teme pelo futuro do KJF, tendo em conta os prejuízos – “inevitáveis” mesmo no caso do agendando do evento para Junho como sugere a CMP.

“As primeiras respostas que estamos a ter para Junho não são encorajadoras”, avança, sublinhando que há o forte risco de perder os artistas internacionais cabeça-de-cartaz.

“O Djavan, um dos principais, o mais forte cabeça-de-cartaz que tínhamos, temos quase a certeza de que já não poderá vir em Junho. Um artista americano já nos pediu a indemnização e, o mais grave de tudo isto, é que todos os artistas contratados têm 50% do cachê já pago. Eles podem ou não estar disponíveis para Junho, e, não estando disponíveis, provavelmente não poderemos reaver a metade do cachê que já pagámos”, apontou.

Diante disso tudo, Djô da Silva diz que realizar o festival em Junho vai depender muito de uma boa reorganização do cartaz, substituir os artistas que tiveram outros compromissos, por outros, sem abalar a qualidade do evento, “não será fácil”.

De todo o modo, vai dizendo que só daqui a duas semanas será possível ter uma ideia precisa se será possível fazer o festival em Junho, “sabendo quem sai e quem fica, para além de verbas disponíveis”, uma vez mais, com todo o desgaste psicológico que isso implica também.

Apesar de a pandemia da covid-19 aparecer no anúncio do adiamento como uma das razões, Djô da Silva considera que, com as novas medidas de relaxamento adoptadas pelas autoridades de saúde, o evento poderia perfeitamente ser realizado.

Por isso, “com os artistas internacionais temos um problema: não temos razão para justificar este adiamento. Se estivéssemos ainda em situação de contingência, poderíamos alegar, mas nem isso podemos fazer”, lamenta, realçando que nos contactos que tem vindo a fazer com os artistas tem tido muito poucas respostas favoráveis. Isto tanto a nível dos nacionais como internacionais. 

CMP reafirma interesse no KJF

Instalada a polémica em torno do Kriol Jazz Festival, a Câmara Municipal da Praia (CMP), através do responsável pelo sector da cultura, Jorge Garcia, diz que tem todo o interesse para que esse evento continue a existir.

De notar que nas primeiras tentativas do A NAÇÃO abordar o assunto, Jorge Garcia havia dito que a CMP estava a reconsiderar a sua decisão de adiar o festival de Abril para Junho.

Djô da Silva, por seu turno, afirmou-nos ter recebido um e-mail da CMP pedindo a retoma do festival em Abril, “nas mesmas condições”, mas que, a seu ver, isso deixara de ser “possível”. 

“Realizar o festival nas mesmas condições no período de tempo que nos resta é impossível. Hoje em dia, por exemplo, as passagens custam o dobro do preço e é uma das condições que não permitem realizar o festival em Abril. Respondemos o e-mail a recusar pelas condições que temos. O único jeito seria duplicar as verbas previstas, mas isso não seria viável. Por isso, pelas condições existentes, temos que esperar para ver o que teremos em Junho”, voltou a avançar o promotor ao A NAÇÃO.

Questões sanitárias justificaram  pedido de adiamento da CMP

Ontem, quarta-feira, Jorge Garcia avançou a este jornal que o pedido de adiamento da CMP prendia-se, unicamente, a questões sanitárias.

“A situação sanitária estava um pouco complicada, por isso, propusemos passar o festival para Junho, na mesma altura em que acontece o Atlantic Music Expo (AME), como tinha sido tradicionalmente. Depois que o Governo afrouxou as medidas, retirando o estado de contingência, fizemos uma outra tentativa insistindo com o promotor para manter a data agendada inicialmente, em Abril”.

Confrontado com a posição da Harmonia de que o adiamento se deveu à falta de engajamento financeiro da CMP, Jorge Garcia diz que “no Kriol Jazz Festival de 2020 foi adiantado uma verba de 10 mil contos”.

“Em princípio, nas nossas contas, ficaram a faltar 5 mil contos já que o orçamento total do festival é de 15 mil contos anualmente. Foi depois que surgiram as questões da pandemia é que o festival não se realizou. Portanto, nas nossas contas, nós tínhamos mais 5 mil contos para atribuir, dado que os outros 10 mil contos já tinham sido entregues para o festival de 2020”, alega também.

Entretanto, continua o nosso interlocutor, “dado que a organização do festival apresentou outros constrangimentos, propusemos mais 8 mil contos em vez de cinco. Só que, uma vez mais, com os impasses que surgiram novamente, as novas medidas sanitárias, atrapalharam tudo e o tempo ficou curto. Mesmo assim, tentamos, mas infelizmente já não dá para voltar atrás e fazer com que o Festival seja em Abril, como o previsto inicialmente”.

Jorge Garcia confirma que a CMP tentou reconsiderar a sua posição inicial, quando admitiu a possibilidade de o festival acontecer com as novas medidas anunciadas recentemente pelo Governo.

“Tendo em conta a importância que o Kriol Jazz Festival já obteve, jamais poderíamos dizer que não queríamos realizar este festival. Acreditamos na importância deste evento. Trata-se de um festival já consagrado na cidade da Praia”.

Apelo a uma maior compreensão das partes envolvidas no KJF

Entretanto, diante do adiamento, agora para Junho, Jorge Garcia assegura que a CMP vai fazer todos os possíveis para que nessa data se realize o KJF.

“Mas temos que saber também se todos os outros promotores cumpriram ou não com a sua parte. Da nossa parte, estamos a fazer alguns arranjos em termos de mobilização financeira para que o festival tenha lugar”, garantiu realçando que toda esta situação é alheia a todos, “sem culpar ninguém”.

“Até porque, o contrato que temos assinado com a Harmonia, em vigor até 2023, é claro neste aspecto. Havendo culpa de um dos lados, este assume todas as consequências. Do nosso lado, apenas por motivos de força maior e não por falta de vontade política da CMP, é que o festival não acontece agora, em Abril. Entendemos que deve haver uma maior compreensão de todas as partes envolvidas, inclusive dos artistas que já receberam o adiantamento, para a situação em que todos nos encontramos neste momento”, termina. 

Sucesso do Kriol Jazz construído passo a passo

A primeira edição do Kriol Jazz Festival (KJF) aconteceu em 2009, uma iniciativa da Harmonia Lda em parceria com a Câmara Municipal da Cidade da Praia, então presidida por Ulisses Correia e Silva.

A ideia central passava por promover a música de “inspiração crioula”, originária de todas as ilhas que passaram por miscigenações, nas Caraíbas, Oceano Índico, além de Cabo Verde, é claro.

Proposta de Djô da Silva

A proposta foi apresentada por Djo da Silva, o produtor que lançou Cesária Évora ao mundo, iniciando assim uma parceria para trazer “mais música” para Cabo Verde.

Até porque o evento, de três dias, surgia como prolongamento do AME (Atlantic Music Expo), este patrocinado pelo Ministério da Cultura, a cargo então de Mário Lúcio Sousa.

Ou seja, além do festival de jazz em si, os participantes do AME podiam aceder a workshops, entre outros eventos, relacionados com a  música na primeira semana de Abril, actuando depois no KJF.

Tcheka: primeiro a subir ao palco do KJF

O cabo-verdiano Tcheka foi o primeiro a subir ao palco do KJF, na Praça da Escola Grande, no Platô, seguido de Bau e Voginha, entre outros artistas nacionais, a par de Meddy Gerville (Reunião), Lenine (Brasil), Regis Gizavo (Madagáscar), Ba Sissoko (Guiné-Conakry), Mário Canonge & Ralph Tamar (Martinica) e Jorge Reyes (Cuba).

Com o sucesso, o KJF prosseguiu, nos anos seguintes, atraindo cada vez mais um público ávido e entusiasta, estendendo-se o gosto pelo jazz a outras ilhas.

Além da Praia, a 12ª edição, prevista para Abril e adiada agora para Junho, deveria ter uma extensão na ilha do Sal. Nomes impensáveis na agenda cultural do país

Pelo KJF já passaram artistas como Seu Jorge, Esperanza Spalding, Richard Bona, Ralph Thamar & Mario Canonge, Kenny Garrett, Ismaël Lô, Jacques Morelenbaum, Jowee Omicil, Manhattan Transfer, Stanley Jordan, Ballake Sissoko, Vincent Segal, Maria Gadú, Manu Dibango, Paulo Flores, Habib Koité, os Tavares Brothers, entre outros. A maioria desses nomes, até então, eram impensáveis na agenda cultural cabo-verdiana.

Risco de declínio

Entretanto, nos últimos dois anos, com a covid-19, o KJF vem sendo adiado, estando por acontecer a 12ª edição, agora, em Junho, caso acontecer, realmente.

A primeira vez que a organização precisou adiar o evento foi em 2020, com o anúncio do primeiro estado de emergência no país por causa da covid-19. Em 2021, como seria de se esperar, dado o contexto pandêmico, o evento voltou a ser cancelado.

Na esperança de que neste ano de 2022 se conseguiria celebrar o regresso do KJF, a organização anunciou que o mesmo estaria de volta nos dias 7, 8 e 9 de Abril. Contudo, a um mês do previsto, eis que a organização volta a suspender, ou adiar, a realização do KJF, desta feita, alegadamente, por falta de recursos.

O Kriol Jazz Festival depende, largamente, do seu principal financiador, a Câmara Municipal da Praia, que cobre 40 % dos 35 mil contos do seu orçamento. O Governo, com 10%, é um outro importante “sponsor”.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 758, de 10 de Março de 2022

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