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Cultura

Mémé Landim: O regresso do rapaz da gaita

Fotos: Jaques Chopin

Depois de 52 anos fora do país, o músico Mémé Landim está de regresso à sua Tchada Lora natal. Uma vida inteira a tocar para as comunidades cabo-verdianas de Portugal, Espanha e França. Razão suficiente para irmos em busca do antigo pastor de cabras que um dia sonhou ser tocador de gaita.

Da Achada Lora vê-se a cidade da Praia, ao longe, antes do mar. E era esse mar que Mémé Landim, de seu nome verdadeiro, Armando Landim do Nascimento, via quando pastava as suas cabras e sonhava com duas coisas: aprender a tocar gaita e emigrar. Mémé é um dos mais castiços tocadores de gaita de Santiago, pela forma como fala e se veste. Assim como o seu estilo de dança no palco, com a sua gaita. Ficámos também a saber como pode ser um dos mais imprevisíveis. A sua casa, onde combinámos o encontro, é um dos seus maiores orgulhos.

Mas, na hora prevista para a entrevista, o músico não está. Resolveu deslocar-se a São Domingos para fazer uma entrega qualquer. Entre trocas de chamadas, pede-nos desculpa e para esperarmos, que não demora. Lá fora o ar é fresco e a chuva dos últimos dias transformou a paisagem em volta de Achada Lora. São poucos os adultos pela aldeia. Um bando de crianças tomou conta da rua principal, brincando e correndo. Na sala da casa de Mémé, três homens tomam um pequeno almoço tardio. Vieram para ajudar a matar o porco, logo cedo. Mémé tinha cinco, agora ficaram quatro, dizem-nos.

O tempo passa, mas Mémé não chega. Novo contacto e novo local de encontro, desta vez na praça que leva o busto de Antoninho Dente D’Ouro, na cidade de S. Domingos. A chuva recomeça, cai forte sobre a cidade. A estrada vira rio amarelo e as crianças invadem a rua, brincando na água. Mais de uma hora depois, Mémé surge numa hiace, como uma aparição, pelo meio da tempestade. O chapéu, o cavanhaque e o bigode branco são inconfundíveis. É uma estranha figura: um homem pequeno de 72 anos no corpo de um jovem. Pernas em calças estreitas de adolescente. Carisma não tem tamanho e na mercearia onde o aguardamos, Mémé é o centro das atenções.

Fascínio pela gaita

Conta como desde criança vivia fascinado com o instrumento, que via nas mãos de tocadores de São Domingos e da Achada Lora. E foi quando lhe despertou uma enorme vontade de aprender a tocar. Mas isso só chegaria aos dezassete anos.

«Antes, quis começar, mas não tinha como.» Um primo tinha uma gaita e cobrava-lhe 25 tostões para lhe emprestar, até ao dia seguinte. Outro amigo, emprestava-lhe durante três dias, «por cinco mil réis». Isto aconteceu por volta de 1969. Mas não era bem um aluguer, diz. «Era mais uma ajuda.» Mas o pai não gostava, não queria que ele entrasse na música.

«Eu era um bom pastor de limária… não de igreja nem de piquenas, de limária…», explica o músico. «Governava-me muito bem, pastava cabra, tinha leite, fazia queijo, vendia, mas gaita o meu pai não queria nem ouvir falar; porque não teria tempo para guardar alimária. Quando um músico vai tocar num casamento ou baptizado ou noutra festa qualquer, as pessoas não deixam depois ele ir para casa, por isso ele não autorizou.»

Assim, Mémé teve de esperar pelos dezanove anos, para começar a tocar a sério, com a ajuda de um rapaz de nome João Salopi, que foi tocar a Lora. «Quando lhe arranjaram namorada lá eu disse, assim já vou aprender mais e poder tocar bem gaita, porque ele era um grande tocador.»

Salopi e o pai também gostaram de Mémé e pediram-lhe que ele arranjasse uma caixa que lhe faziam uma gaita. E assim foi. «Eu já tinha o dom, só de ver, e em três meses aprendi tudo o que precisava; aprendi também com outros tocadores, inclusive Orlando Gomes, que veio de São Tomé com uma gaita grande.»

Lisboa e Europa

Mas Mémé não ficou muito mais tempo por Cabo Verde. Menos de um ano depois, em 1971, embarcou para Portugal, onde foi acolhido por um tio. Começou a trabalhar no dia seguinte, com a mesma roupa com que tinha chegado. «Ganhava 82 escudos por dia, e quando terminou essa obra fui trabalhar na linha dos eléctricos, a ganhar 110 escudos. Cheguei a Lisboa em Dezembro e em Junho do ano seguinte, comprei a minha gaita nova, por 1150 escudos.»

E é quando descobre a facilidade das gravações em cassetes, com os aparelhos de som, onde iria ganha dinheiro. «Durante o ano de 1972, todas as segundas-feiras, eu mandava ao meu pai dois contos e quinhentos, no valor declarado, naquela carta em que se colocava o carimbo.» Na época, um trabalhador normal precisava de trabalhar, pelo menos, um mês para enviar essa mesma quantia. «Nas noites de domingo, na casa onde morávamos, umas 12 pessoas, no Cacém, com primos, irmão e amigos, eles punham-me a tocar, obrigatoriamente, e faziam essas gravações e eu ganhava dinheiro.»

Do Cacém, Mémé muda-se para a Amadora, para o Bairro de Santa Filomena. «Casei na igreja da Amadora, em Abril de 1975; depois fui para Miraflores, para o bairro da Pedreira dos Húngaros. Quando ia tocar para esses bairros, Damaia, Buraca, Fontainhas, o pessoal vinha buscar-me a casa e trazer-me. Mas era perigoso, por isso não queria ninguém a menos de dois metros de mim.»

Em 1976, Mémé muda-se para Queijas, onde abre um bar e outro na Pedreira dos Húngaros, onde ficou um compadre. O regresso a Cabo Verde acontece em 1977, dois anos depois de casar. Mas quando retorna à Europa, emigra para Espanha, para Andorra Teruel, a 100 quilómetros de Saragoça, onde trabalha quatro anos, sempre na construção civil. Depois, em 1980, resolve ‘entrar’ em França, para Cannes e Nice, deixando a família em Espanha. Até que se juntam todos em Paris, onde tem estado desde 1994.

O apelo do funaná

E é em França que ele começa a pensar nas gravações a sério, com o destaque que o funaná começa a ter, em Cabo Verde. «Já tinham surgido Codé di Dona, Rabenta, Bitóri Nha Bibinha, Fidjos di Funaná. Kaká, um amigo de Zeca di Nha Reinalda, precisava de um bom tocador de gaita, mas Zeca disse-lhe que eu já deveria ser velho, porque desde muito novo ouvia falar em Mémé Landim. Mas Kaká respondeu que eu estava mais novo do que eles os dois.»

Respondendo ao convite, Mémé gravou o seu primeiro CD, Canga Boi (1999), com Zeca di Nha Reinalda, e mais tarde o segundo, Tchada Pilam Katuta (2005), ele próprio. «Passei 10 meses em Cabo Verde, a tocar por todo o lado.» E através de Jacques Chopin, antigo responsável do Centro Cultural Francês da Praia, Mémé participa, em 2006, no Canadá, num festival internacional de música de acordeão, seguido de outros espectáculos nesse país.

Na idade, Mémé só é ultrapassado por Bitóri Nha Bibinha, nos tocadores de gaita tradicionais. Mas lamenta que os jovens de hoje queiram tocar mais o estilo kotxi pó, «que está na moda», do que o funaná tradicional. «Se houvesse uma escola, eu até poderia ensinar quem quisesse aprender. Mas não Kotxi pó, isso eu não compreendo nada. Mas não tinha estado também muito por aqui, mas mais entre Portugal e França.» Os filhos, a filha e netos, diz, também não se interessam pela gaita. «Eu tenho um filho, Zé Mulato, que era profissional da música, mas também deixou.»

A chegada de Mémé a São Domingos (vindo da Praia), na hiace, sorridente, por entre a chuva forte, parece saída de um filme. Mas é aqui que ele diz querer mesmo viver e comer ‘rabo di pexe’, vendido pelas peixeiras de São Domingos, suas amigas.  A música continua, naturalmente, até poder. O que não nos parece ser um grande problema, nos próximos tempos.

De resto, o tempo agora, diz Mémé, é de regresso e de descanso. «Tenho três reformas, uma em Portugal e duas em França, e ainda uma outra em Espanha, que estou a tratar. Família ficou na Europa. Tenho a minha casa em Lora, onde vivo com um rapazinho que trabalha comigo. Tenho porco, tenho vaca, pato, cabra, carneiro e depois de 52 anos na Europa, agora quero é viver na minha zona, tranquilo.»

Por: Joaquim Arena

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 834, de 24 de Agosto de 2023

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