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Opinião

Uma solução cabo-verdiana para a eliminação do paludismo

Autores: Deisy Rocha* e Fredilson Melo **

O paludismo causa milhões de mortes anualmente. Estima-se que em 2021 houve 234 milhões de casos a nível mundial, com 95% das infecções e 96% das mortes em África. Desde 2018, Cabo Verde não regista casos de infecção local por paludismo, cumprindo assim um dos critérios para a certificação da eliminação da doença. Este feito deve render a Cabo Verde um certificado de eliminação do paludismo no próximo ano.

Uma ameaça antiga

O paludismo é transmitido por mosquitos Anopheles (An.) e causado por parasitas Plasmodium, que reproduzem-se nos glóbulos vermelhos, levando frequentemente à morte do hospedeiro, especialmente grávidas e crianças menores de cinco anos.

A doença existe em Cabo Verde desde os anos coloniais, com ocorrência irregular, sazonal e baixa endemicidade. Houve períodos de eliminação temporária entre 1968 e 1972, e entre 1983 e 1985. No entanto, o paludismo foi um grande problema de saúde pública até aos anos 1940, com mais de 10 mil casos e mais de 200 mortes por ano. Embora a severidade da doença tenha diminuído nos últimos anos, ainda ocorrem surtos esporádicos.

Segundo o Dr. Adilson DePina, responsável pelo Programa de Eliminação do Paludismo em Cabo Verde, após o último surto em 2017, as estratégias de combate à doença foram redesenhadas. Isso inclui a administração de primaquina e outros antimaláricos, bem como uma vigilância que envolve hospitalização, tratamento imediato e acompanhamento pós-recuperação dos casos positivos. Além disso, houve sensibilização da população e sanitização com inseticidas.

A singularidade do caso de Cabo Verde

Entre 2010 e 2019, Cabo Verde registou 814 casos de paludismo, uma taxa de incidência de menos de 0,1/1000 pessoas; um número muito baixo numa região onde a taxa de incidência é normalmente dez a duzentas vezes superior. Dos casos registados, cerca de um quarto são importados, e cerca de metade são resultado do surto de 2017.

Em Cabo Verde, o mosquito An. arabiensis é o único responsável pela transmissão do paludismo, vivendo e picando principalmente fora de casa (exofílico e exofágico), um comportamento incomum em África, embora não inédito para a espécie. No entanto, também o An. pretoriensis é comum em Cabo Verde, embora ainda não se tenha registado esse mosquito como transmissor de paludismo, quer seja em Cabo Verde ou em outro lugar.

A Dra. Lara Ferrero Gómez, investigadora e docente na Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, sugere que a competição entre os mosquitos Anopheles, Culex e Aedes pode estar na base do comportamento mais exofílico e exofágico do An. arabiensis no país. “A interação ecológica entre os três mosquitos pode ter obrigado o Anopheles a habitar espaços mais rurais, com mais animais e vegetação.”

Esse comportamento poderá explicar o porquê do padrão de infecção em Cabo Verde ser diferente, com homens adultos a serem os principais infectados. “Há um historial de infecção de homens com profissão de guarda ou segurança” que são pessoas que normalmente trabalham fora de casa, revela o Dr. DePina.

Um país livre de paludismo

Em 2021, Cabo Verde solicitou à Organização Mundial da Saúde (OMS) a certificação de eliminação de paludismo, que requer a ausência de casos locais da doença por três anos consecutivos. O país está há mais de cinco anos sem casos de paludismo.

‘’Desde o ano passado, Cabo Verde tem sido seguido pela OMS para avaliar a situação do país e fazer recomendações do que deve ser melhorado e preparado para o processo de avaliação rumo à certificação. E nestas duas últimas semanas [do mês de outubro] e até 1 de novembro, está em Cabo Verde uma equipa independente a fazer a avaliação”, adianta o Dr. DePina.

O certificado de eliminação, que coloca o galardoado na lista de “países livres de paludismo”, reconhece também que o país tem um sistema de vigilância e resposta capaz de prevenir novos casos locais. Nos últimos 20 anos, apenas doze países conseguiram o certificado, com os únicos dois países africanos na lista localizados no norte do continente. Cabo Verde pode tornar-se o único país da região subsaariana a alcançar o feito em duas décadas.

“Cabo Verde pode vir a ser o único país da região subsaariana a conseguir o feito em duas décadas.”

Novas armas contra o paludismo

O desenvolvimento recente das vacinas contra o paludismo RTS,S/AS01 e R21/Matrix-M marcou um histórico avanço no combate à doença. No entanto, os métodos de controle vetorial continuam vitais, principalmente face à emergência de resistência a inseticidas. Um estudo de 2019 demonstrou que o An. arabiensis em Cabo Verde tem mutações de resistência à piretróide, um insecticida utilizado no país, levantando preocupações sobre a eficácia do controle vetorial.

A Dra. Gómez, que participou do estudo, enfatiza que “a resistência a inseticidas piretróides e organofosforados existe e vai aumentar ao longo do tempo.” Uma estratégia eficaz de controle deverá requerer a sua “adaptação ao comportamento do mosquito, que também está relacionado com o comportamento da população local.”

Adilson DePina e Lara Ferrero Goméz consideram necessário o fortalecimento da colaboração entre as instituições nacionais que trabalham com o paludismo, o investimento nos recursos humanos, nomeadamente de técnicos de terreno que trabalham diretamente com os vetores de transmissão, assim como investimento na investigação, de modo a se poder manter o país sem casos locais de paludismo.

Uma lição de Cabo Verde

Segundo a Dra. Gómez, ainda há muito a descobrir sobre o An. arabiensis em Cabo Verde, como os seus hábitos de picada e horários, informações cruciais para determinar os períodos de maior risco de infecção. O Dr. DePina concorda que há “um campo fértil de questões” sobre o paludismo e os mosquitos a serem investigados no país.

Apesar disso, o programa de combate ao paludismo em Cabo Verde alcançou resultados notáveis, com a ausência de casos nos últimos cinco anos. Isso se deve a vários fatores, incluindo um sistema de saúde abrangente e gratuito para todos os residentes. O paludismo é uma doença de notificação obrigatória em todo o país, tendo de ser feito num período de 24h, ao Programa Nacional de Controlo do Paludismo e ao Programa Integrado de Vigilância e Resposta a Epidemias.

Para além do internamento em todos os casos confirmados de paludismo, e até à eliminação do parasita do sistema do paciente, este é ainda monitorizado por um período de tempo após a alta. O país aposta também numa forte ação de sensibilização da população sobre o paludismo, assim como em ações de pulverização interna de residências e, a um determinado ponto, utilização de peixe para controle de larvas de mosquito.

Para o Dr. DePina, a certificação representa um ganho enorme, especialmente para o sector turístico, uma área vital para a economia do país, pois garante aos turistas que podem viajar tranquilamente para Cabo Verde porque as chances de serem infectados no país são perto de zero.

Cabo Verde atingiu o seu objetivo de eliminação de paludismo até 2020. O caminho que levou a este marco histórico pode servir de fonte inspiração para outros países na luta contra o paludismo.

*Doutora em Ciências da Saúde, Universidade do Minho

**Doutorando em Biologia, Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier

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