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Uma breve reflexão sobre a influência da diversificação e massificação do comércio chinês em Cabo Verde

Por: Pedro Clóvis Fernandes

Longe vão os tempos em que os filhos dos pobres trajavam roupas remendadas multicolores e pés descalços sulcando o chão de terra batida entre os bairros ou zonas da cidade da Praia, gozando de uma infância plena numa sociedade que, embora desguarnecida praticamente de coisas materiais, era serena, humilde e segura sob todos os aspetos. 

Recordo-me da criançada do bairro, onde nasci e cresci, Achadinha, que, em tempos de aulas, corria em tumulto para a escola, usando como mochila, uma bolsa de plástico que se rompia com facilidade, quando por exemplo, um lápis bem afiado furava o saco e extraviava-se no percurso.

Situação socioeconómica das famílias nos anos 70 e 80

Nessa altura, entre os anos 70 e 80, uma esmagadora maioria das famílias tinha uma situação socioeconómica muito difícil que não lhes permitia satisfazer todas as legítimas necessidades dos filhos, mormente a nível do vestuário. 

As melhores peças de vestuário e calçados eram reservados para ocasiões especiais como ir à missa aos domingos, festas de batizado, aniversários, festas nas escolas, exames escolares, pouses para retratos, etc. Assim, quando se abria uma mala para se tirar algum vestuário novo, sentia-se o odor forte e nauseabundo de naftalina, um produto químico que se colocava no interior das malas para proteger as roupas das tranças.

Lembro-me que quando estreava uns sapatos novinhos em folha, caminhava pelas ruas com os olhos fixos no chão para que não tropeçasse em nenhum objeto que pudesse danificá-los, sob pena de levar uma repreensão ou sovada familiar. Depois do evento considerado especial, as roupas usadas eram bem lavadas, engomadas com ferro a carvão e sepultadas de novo no fundo das malas até à próxima oportunidade.

Abertura política e liberalização do mercado

Já a partir da década de 90, com a abertura política e consequente processo de liberalização do mercado nacional impulsionada pelo fenómeno da globalização, o arquipélago tornou-se um polo de atração para vários investidores estrangeiros, com destaque para os investimentos europeus, asiáticos e árabes, levando o país a produzir mais empregos e mais rendimentos tanto para as famílias como para o Estado cabo-verdiano. 

Sendo assim, o acesso a diversos tipos de bens materiais considerados essenciais como produtos alimentares, eletrodomésticos, vestuários, calçados em quantidade e qualidade suficientes, começou a transformar profundamente os hábitos da sociedade cabo-verdiana.

Na verdade, o país já tinha alguns estabelecimentos comerciais de relevo que vinham operando desde os períodos coloniais e contribuindo de forma significativa para o desenvolvimento económico, social e cultural dos cabo-verdianos. 

Quem não se recorda de algumas emblemáticas casas comerciais do Platô como Serbam, Casa Serra Oliveira, Casa do Leão, Loja FireStone Loja Herculano, Manuel dos Anjos, Casa Feba, Loja Felicidade, JBC, entre várias outras?

Desses antigos estabelecimentos comerciais, apenas um ou outro conseguiu manter as portas abertas ao longo de vários períodos da história e de uma sociedade em acelerada mutação. 

Neste quadro de crise e declínio, importa questionar: quais seriam as verdadeiras causas que poderiam ter ditado a queda das velhas casas comerciais do Platô e de várias outras pequenas, médias e grandes empresas nacionais e estrangeiras atualmente? Na minha opinião muito pessoal, poder-se-á invocar duas razões principais.

Causas da queda de algumas casas comerciais emblemáticas

A primeira está associada ao surgimento do comércio informal e da concorrência de Sucupira que, com importação e venda de vestuário e calçado já feitos, desencadeou a queda na procura de tecidos e confeções. 

A par disso, registou-se também uma grande explosão de vendas ambulantes no Platô, uma estratégia de negócio trazida pelos povos vizinhos e, posteriormente, reproduzida pelas vendedeiras nacionais como forma de driblar o desemprego e ganhar o pão para os seus filhos. 

A segunda razão, vista como determinante para o declínio final das casas comerciais do Platô e do enfraquecimento do comércio informal de Sucupira, tem a ver com a presença e propagação do comércio chinês em Cabo Verde. 

É costume dizer-se que os chineses vestiram e calçaram os cabo-verdianos. De facto, durante décadas, a China tem sido uma parceira estratégica fundamental para o país em todos os seus domínios de desenvolvimento. 

Concorrência do comércio chinês

No entanto, se por um lado, o comércio chinês foi benéfico para o país, no sentido de permitir aos cabo-verdianos ter acesso a uma vasta gama de produtos de que o país necessitava, sem contar com vários tipos de investimento de vulto a nível das infraestruturas, por outro, fez sucumbir uma série de empresas nacionais que não resistiram à concorrência chinesa. 

Como afirmou um antigo funcionário da Loja Herculano: “Esse mercado chinês desgraçou mesmo os comerciantes informais de Sucupira, que traziam mercadoria do Brasil com alguma qualidade. Alguns aguentam-se, mas outros já desistiram.” Por fim, disse: “Os chineses invadiram tudo”.

Ora, os preços praticados pelos chineses são impossíveis de serem competidos com os preços nacionais, embora estejamos certos de que os produtos chineses são normalmente de uma qualidade inferior quando comparados com os produtos europeus ou americanos com um índice de durabilidade maior. 

Com o passar dos anos, o comércio chinês não ficou somente pelo vestuário, calçado e tecidos. De uns a esta parte, os chineses têm vindo a investir pesado em todos os setores da atividade económica e vão preenchendo o vazio dos vários espaços comerciais abandonados tanto por empresários nacionais como estrangeiros. 

É preciso esclarecer que não tenho nada contra a presença ou o investimento chinês em Cabo Verde. A minha preocupação, prende-se, sobretudo, com a massificação descontrolada dos negócios chineses no arquipélago por estar a asfixiar os comerciantes e empresários nacionais e estrangeiros e tornar o país perigosamente dependente da China. 

É hábito vermos as lojas chinesas apinhadas de pessoas, entrando e saindo, enquanto as nacionais, na sua maioria, praticamente, vazias de clientes, onde se costuma ver os seus funcionários com um olhar distante ou agarrados aos écrans dos telemóveis como forma de fazer o tempo voar,  situação que, a meu ver,  poderá gerar alguns problemas de foro psicológico como ansiedade, frustração e medo iminente de se perder o emprego por falta de movimento.  

Em suma, o cenário acima descrito inspira muita preocupação e está, de facto, a conduzir o país para uma dependência total em relação ao comércio chinês que vai paulatinamente provocando erosão no tecido empresarial cabo-verdiano. 

Entretanto, sabendo que se trata de um quadro muito pouco provável de ser alterado, apenas resta a quem é de direito tomar medidas que se impõem necessárias e prementes para salvaguardar o empresariado nacional, mas sem minimizar a riqueza da diversidade linguística, cultural e comercial existente no país. 

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