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Cabo Verde: Administração Pública capturada pelo partido do governo (2)

Por: João Serra*

Escrevi, na primeira parte deste artigo, publicada na edição anterior deste periódico, que, por causa da excessiva politização/partidarização, a nossa administração pública é, cada vez mais, percecionada, por muitos cabo-verdianos, como uma propriedade exclusiva de quem exerce o poder. Tal visão reforça a imagem negativa dos partidos e da máquina administrativa, para além de condicionar, negativamente, o desempenho dos serviços públicos e o próprio desenvolvimento do país.

Portanto, a questão fundamental que se coloca é a seguinte: como conter os danos da excessiva politização/partidarização da administração pública cabo-verdiana?

Não se trata de uma questão de resposta fácil, tendo em conta a sua complexidade. Para isso, impõe-se um debate alargado, ponderado e sem estados de alma.

Como afirmara num dos vários artigos que escrevi em 2007, “tem faltado aos decisores políticos vontade política para definir e, sobretudo, implementar um conjunto coerente de princípios gerais e estratégias, que englobe todas as componentes da reforma do Estado, com o objetivo principal de tornar o aparelho do Estado mais adaptado à nossa dimensão e realidade, e a administração pública mais eficiente e assente num modelo de serviço público centrado nos cidadãos e nas empresas.”

Seja como for, a administração da máquina do Estado é pública e, como tal, deve ser controlada. Para o controlo sobre políticos e funcionários é fundamental que o Governo em funções mantenha os cidadãos informados sobre políticas e atividades que pretende executar e sobre as que vem sendo executadas. No entanto, o insuficiente envolvimento dos cidadãos na política leva, muitas vezes, à ausência de controlos, formando-se, em decorrência, um ciclo vicioso. Por um lado, a insuficiência da procura por parte dos cidadãos faz com que a transparência por parte dos partidos e dos governos seja baixa. Por outro lado, o afastamento dos cidadãos relativamente aos partidos e processos políticos é maior, quanto menos informação é lhes disponibilizada por parte dos poderes instituídos.

É aqui que surgem as organizações da sociedade civil. Em vários países, elas têm assumido um papel crucial nessa intermediação, funcionando como catalisadores de ação coletiva, face à inércia do Governo relativamente à mudança. Neste âmbito, tem de caber à sociedade civil a exigência de informação. Só assim, ela poderá funcionar de forma enriquecida, esclarecida e imune à manipulação da informação, como uma espécie de sistema de freios.

Entretanto, já existem experiências e boas práticas de outras latitudes, que poderão constituir referenciais a serem adaptadas à nossa realidade. Uma das experiências bem-sucedidas para conter os danos associados às nomeações políticas é a limitação do monopólio do Governo sobre as nomeações, através da criação de uma entidade independente responsável pelo escrutínio dos candidatos para posições de dirigentes.

Por exemplo, em Portugal existe a Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP). Segundo os seus estatutos1, publicados no Diário da República, “A Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública, adiante designada por Comissão, é uma entidade independente que funciona junto do membro do Governo responsável pela área da Administração Pública”. A CReSAP tem por missão “o recrutamento e a seleção de candidatos para cargos de direção superior da administração central do Estado … ou para cargos a estes equiparados a qualquer título…”

A Comissão tem ainda por missão “a avaliação, nos termos previstos no Estatuto do Gestor Público …, dos currículos e da adequação das competências das personalidades indigitadas para exercer cargos de gestor público ou cargos a estes equiparados a qualquer título”.

Para garantir a sua independência, dispõem os estatutos que “Os membros da Comissão e da bolsa de peritos atuam de forma independente no exercício das competências que lhes estão cometidas por lei e pelos presentes Estatutos, não podendo solicitar nem receber instruções do Governo ou de quaisquer outras entidades públicas ou privadas …”

 Ainda segundo os estatutos, “No âmbito das suas atribuições, compete à Comissão, nomeadamente:

a) Estabelecer, por regulamento, as regras aplicáveis à avaliação de perfis, competências, experiência, conhecimentos, formação académica e formação profissional aplicáveis na seleção de candidatos a cargos de direção superior na Administração Pública;

b) Proceder, mediante iniciativa dos departamentos governamentais envolvidos, à abertura e desenvolvimento dos procedimentos de recrutamento para cargos de direção superior na Administração Pública, de acordo com os perfis genericamente definidos naquela iniciativa;

c) Estabelecer os métodos de seleção a aplicar nos procedimentos concursais, havendo sempre lugar à realização de avaliação curricular e entrevista de avaliação, podendo a Comissão optar ainda pela aplicação de outros métodos de seleção previstos para o estabelecimento de vínculos de emprego público…;

d) Apoiar a elaboração e o desenvolvimento da política global e setorial com incidência nos quadros de direção superior da Administração Pública e participar na sua execução;

e) Promover atividades de pesquisa e de confirmação de competências relativamente a personalidades que apresentem perfil adequado para as funções de cargos de direção superior na Administração Pública;

f) Promover as boas práticas de gestão e ética para titulares de cargos de direção superior na Administração Pública;

g) Promover a aprovação e adoção de princípios orientadores para códigos de conduta destinados a titulares de cargos de direção superior na Administração Pública;

(…)”

Proponho para Cabo Verde a criação de uma entidade de recrutamento independente similar à CReSAP, mas com as nuances que se seguem, tendo em conta as críticas de alguma politização/partidarização da administração pública portuguesa que ainda subsistem.

À semelhança do que acontece com o Banco de Cabo Verde, essa entidade não deve funcionar junto de governante algum. O membro do Governo responsável pela área da Administração Pública asseguraria, apenas, as relações institucionais entre a entidade e o Governo. Por isso, a entidade deve ser dotada de recursos próprios, entre os quais recursos humanos, que lhe permitam exercer com uma total independência do Governo as suas funções, evitando, assim, uma potencial influência política do Governo sobre ela.

Para além disso, proponho para essa entidade, entre outros, os seguintes aperfeiçoamentos relativamente ao funcionamento da CReSAP:

Alargamento do perímetro de cargos sujeitos à apreciação da entidade, com a inclusão de empresas públicas e entidades reguladoras;

Divulgação, além dos três nomes que compõem a checklist entregue ao já referido membro do Governo, dos critérios utilizados no processo de seleção, de forma a aumentar a transparência dos processos de recrutamento, assegurando, assim, mérito e igualdade de oportunidades (no recrutamento), tal qual estabelecido na Constituição;

Estabelecimento de limites para efeitos de utilização do regime de substituição de dirigentes;

Imposição de limites ao período de tempo em que um dirigente se pode manter na situação de substituição.

Uma entidade de recrutamento independente, nos moldes propostos, faria com que as nomeações surgissem, em larga medida, como imunes ao controlo do poder político, contendo, desse modo, os danos que as nomeações políticas provocam. Ao fim e ao cabo, estamos a falar de uma administração pública do Estado, que deve garantir a todos os cidadãos igualdade de oportunidades.

E Cabo Verde bem precisa disso!

Praia, 01 de novembro de 2021

* Doutor em Economia

1Estatutos da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública, publicados no anexo A à Lei n.º 64/2011, de 22 de dezembro, com as alterações introduzidas e republicadas pela Lei n.º 128/2015, de 3 de setembro

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 740, de 04 de Novembro de 2021

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