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O diabo está nos detalhes

Por: Germano Almeida

A entrevista concedida à RTC-CV pelo dr. João Santos leva-me a tecer algumas considerações sobre as posições que expendeu e também os conselhos que deixou. Mas antes de mais quero manifestar a minha estranheza por algo que ouvi da boca dele e me causou sérios arrepios enquanto advogado: ele acusar o Amadeu Oliveira (e de caminho exortar-me a fazê-lo parar; só que nada tenho a ver com isso!) de estar a atrasar o seu processo por excesso de interposição de recursos.

Francamente, dr, não contava ouvir um advogado dizer tal enormidade, não fica bem. Melhor, fica muito mal! Como sabe, as ideias e os princípios de recorrer foram instituídos para dar garantias de defesa aos cidadãos contra os arbítrios dos poderes constituídos. Nasceram como conquistas dos mais fracos contra os que mandam desde os tempos da Inquisição, talvez até muito antes disso, como aliás o prova as Ordenações Manuelinas que em muitas situações previam o recurso contra decisões do próprio monarca. São, pois, escudos que as pessoas perseguidas adquiriram o direito de usar, e olhe que são conquistas penosamente assacadas pelos defensores aos poderes públicos. Mas (essa parte é normalmente esquecida) do mesmo modo que um acusado tem um prazo para interpor o seu recurso, também os juízes têm outro prazo para decidir esse recurso. Os acusados cumprem sempre o seu prazo, sob pena de o perderem. Podemos dizer o mesmo dos juízes? Portanto, não culpe o Amadeu de atrasar os processos, não é nele que está a causa do atraso de nenhum processo. Basta dizer que ele tem pendente do tribunal constitucional um recurso de amparo há quase um ano. O tribunal decidiu metade e a outra metade está pendente. E que se pode dizer “do pedido de um grupo de Deputados de fiscalização da constitucionalidade da Resolução da Assembleia Nacional que autoriza a prisão do Deputado Amadeu Oliveira”?

Mas sempre lhe vou dizendo que sou favorável a um expurgo profundo dos códigos de processo, uma grande simplificação é necessária, garantias de defesa que fizeram sentido no passado já não têm razão de ser na nossa época.

Mas volto à entrevista do senhor dr JS para lhe dizer que ele tinha especial dever de não fazer as pessoas caírem em erro, e afinal desiludiu. É que não sou advogado do Amadeu Oliveira. Nunca fui. Porém, muito antes de o Amadeu Oliveira ser deputado, tive oportunidade de encabeçar um abaixo-assinado dirigido ao então presidente da República no qual se pedia uma investigação independente às acusações que o Amadeu vinha tecendo contra certos magistrados, para que medidas adequadas fossem tomadas com vista a punir quem tivesse prevaricado, fossem os magistrados, fosse Amadeu Oliveira. Com o pretexto da separação de poderes, o presidente recusou intervir. E foi pena, porque as dúvidas acerca do fundamento das suas acusações apenas cresceram e se avolumaram. E o que as pessoas em geral agora pensam é que prenderam o Amadeu para o calar. E essa abusiva prisão preventiva que não está a acautelar coisa nenhuma e por isso não é mais que um inadmissível e indigno abuso de poder que já não julgávamos possível na nossa terra.

Mas se não sou advogado do Amadeu, porque então participo neste processo? Apenas porque acho inadmissível, e contra isso vou sempre protestar, que malevolamente se aproveite do caso da ida para França do seu constituinte para acusar o Amadeu de um inventado crime contra a segurança do Estado e mantê-lo preso, enquanto afanosamente buscam pescar outros crimes como esse do Porto Novo que o mais certo é estar já prescrito. E isso é de uma violência, de uma má fé inaudita que brada aos céus e que nada pode justificar. Não dignifica nem quem o acusou, nem aqueles que aceitam essa aleivosa acusação. Amadeu Oliveira está ilegalmente preso. E está ilegalmente preso, com a bênção do Presidente da Assembleia Nacional que aceitou um ilegal requerimento do procurador-geral pedindo a audição do Amadeu como arguido (Mas arguido de quê?) e abertamente lhe ditou a sentença no dia 13 de janeiro passado: “Os ataques ao sistema judicial, particularizando e vilipendiando os seus titulares, têm sido inqualificáveis e devem ser contidos”. E de facto estão sendo ferozmente contidos e da forma mais perversa: mantendo ilegalmente a ferros um deputado da Nação.

Mas isso que já era por si só excessivo, ainda não foi tudo. Mais grave de tudo foi ver a Assembleia Nacional ter artes de suspender das suas funções um deputado depois de permitir que o mesmo esteja preso há mais de um ano.

É por isso que continuo defendendo que o presidente da República tem que ter sobre essa grave questão uma ou mais palavras a dizer. É verdade que há separação de poderes e tudo o mais, porém o presidente da República é o guardião por excelência da Constituição. Tanto mais que no ato da investidura ele jura “defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição”.

  Vejamos então a sequência dos atos que justificam esse apelo ao presidente: O Amadeu está preso há mais de um ano por ordem do tribunal de Relação de Barlavento. Portanto, bem ou mal, legal ou ilegalmente, ele está entregue ao poder judicial, preso preventivamente.

Porém, um ano depois dessa prisão, o tribunal finalmente lembra-se que é um deputado que está preso, mas preso sem primeiro terem sido cumpridos os requisitos legais exigidos para a execução da prisão de um deputado. E não só não o pode levar a julgamento, porque não foi antecipadamente pronunciado por nenhum crime, como também já não pode pedir à Assembleia para o suspender da função de deputado, porque isso era um requisito prévio à sua prisão.

Que fazem então para sair dessa enrascadela? Convocam o procurador-geral, e é ele que aparece a solicitar ao Parlamento a suspensão do mandato do deputado Amadeu Oliveira!

  O procurador-geral! Uma entidade que pela sua própria natureza nada tem e legalmente não pode confundir-se como órgãos jurisdicionais. Porém, a necessidade de resolver esse erro de palmatória que tinha sido a prisão de um deputado sem ter o mandato suspenso, não deixou ninguém dar conta da incongruência que se estava a praticar: o procurador-geral da República assumir-se como juiz e pedir a suspensão do mandato de um deputado que está há um ano na cadeia por ordem de um juiz. Dir-se-ia estarmos numa república das bananas, se o nosso Parlamento ele próprio não tivesse mostrado com esse ato que afinal não estamos em república nenhuma.

Neste caso Amadeu Oliveira a Constituição tem sido severamente violada. Mais grave ainda: violada pela própria Assembleia Nacional que não hesitou em suspender um deputado um ano e dias depois de estar preso, e mesmo assim a pedido do procurador-geral.

Assim, quem jurou e tem o dever de defender e fazer cumprir a Constituição tem que ter uma palavra a dizer. Como cidadão ele pode simplesmente deplorar esse excesso de prisão preventiva em que se encontra o Amadeu Oliveira e nada mais justifica exceto o abuso de poder. Mas como presidente da República com a função de fazer cumprir a Constituição, ele não tem o direito de se calar. 

PS: já tinha este texto escrito quando me falaram e fui ler o post do senhor presidente da República. Não vi razão para mudar o meu. Como diz o outro, o diabo está nos detalhes. E foram os detalhes que informaram mal o senhor presidente. Por exemplo, as pessoas ouvidas pelo presidente ter-se-ão esquecido de lhe dizer que excede a competência da Procuradoria Geral pedir o levantamento da imunidade ou a suspensão de um deputado. Só um juiz o pode fazer, e isso depois de pronunciar o deputado por um certo crime. No entanto Assembleia Nacional aceitou essa violação da Constituição sem hesitar. E mais: aquando daquilo que o senhor presidente chama de levantamento da imunidade, fê-lo através da Comissão Permanente, quando o estatuto dos deputados exige votação pelo plenário. E para a suspensão do mandato, os “ouvidos” deveriam ter dito ao presidente que a Constituição exige que o deputado seja previamente ouvido. E o Amadeu, preso desde julho do ano passado na cadeia da Ribeirinha, foi de facto mandado ouvir por escrito. Porém agora em julho deste ano. E é importante não esquecer: depois de um ano preso! De modo que a única divergência que no presente caso pode haver entre os juristas e os atores políticos é que aqueles querem o cumprimento da Constituição para que todos possam dormir sem sobressaltos. Enquanto que os políticos agem substituindo a lei pela sua vontade.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 779, de 04 de Agosto de 2022

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