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Convidados

Continuarei a insistir

Por: Germano Almeida

É pura perda de tempo tentarem ensinar-me ou lembrar-me dos limites que a Constituição impõe relativamente à separação de poderes, ou dizerem-me que não é razoável exigir certos comportamentos do presidente da República, dado que a Constituição inibe-o de agir. Digo que é perda de tempo porque consumi muitas horas na discussão e elaboração da atual Constituição, durante um período (breve!) em que acreditámos que estávamos a contribuir para a construção de um Cabo Verde diferente.

Certamente que não faria ao presidente da República os apelos que venho fazendo, se estivéssemos numa situação normal da nossa vida público-política, com cada órgão do poder do Estado cumprindo escrupulosamente e sem mácula a sua função, isto é, com lisura e seriedade e sem atropelos a instituições ou cidadãos. Mas infelizmente não estamos assim. Pelo contrário, como disse alguém, a nossa vida política está a apodrecer a olhos vistos e alguém tem que tomar conta.

Deixemos de lado o Governo. Os erros que vem cometendo excedem tudo que alguma vez se poderia imaginar de pior porque está a agir como se estivesse em fim de mandato, aproveitando e criando todas as oportunidades de garantir legado e heranças, quer a filhos, quer a enteados ou só amigos.

À inqualificável gestão dos transportes, quer aéreos quer marítimos, junta agora um aval de três milhões de contos para enterrar nos TACV, com vista à sua privatização futura. Ouvi e li, mas pensei, há ali zeros a mais, não podem estar a dizer três milhões de contos. Mas afinal estão! Diante disso, a criação do tacho que é a agência da concorrência é um pormenor irrelevante.

Ora, estranho é que se estranhe que se peça a intervenção do presidente da República com vista a pôr ordem nessa verdadeira balbúrdia. Porque se não for ele, quem? Por exemplo, numa situação em que dois órgãos de soberania, a Assembleia Nacional e os Tribunais, apostaram em encarniçar contra um homem, um cidadão que parecem odiar com um ódio insano, ambos com clara e desavergonhada violação das leis, alguém tem que pôr ordem nesta sanzala, e então só resta clamar para o presidente da República.

Porque infelizmente, no caso Amadeu Oliveira (AO), não se pode contar que o Parlamento ou os Tribunais reconheçam finalmente estar a laborar em erro. Vejamos o Parlamento: deferiu um pedido do procurador-geral da República e entregou um deputado às mãos dos seus atuais algozes, porque, disse o presidente do Parlamento, “os ataques ao sistema judicial, particularizando e vilipendiando os seus titulares, têm sido inqualificáveis e devem ser contidos”.

Até reconheço beleza na frase-sentença do presidente da Assembleia Nacional expressa no dia 13 de janeiro de 2022, dito dia da Liberdade e da Democracia.

Esses “ataques” deviam ter sido contidos, sim, porém respeitando as leis do país, e todos nós diríamos, muito bem, há ordem e autoridade nesta terra! Mas não, preferiu-se jogar à bruta, atropelando a Constituição, o estatuto dos deputados, os valores, a democracia. E eu comecei a dizer desde a primeira hora, Amadeu Oliveira foi ilegalmente preso, o deputado tem privilégios, tem imunidades, ele não pode ser tratado como qualquer um, é preciso repor a legalidade democrática para que todos nós possamos dormir tranquilos.

  Mas não, ninguém me ouviu, eu sou coitado. Porém, agora é diferente! Agora temos o eminente, o respeitado Wladimir Brito (WB) a dizer que a prisão do Amadeu Oliveira foi e continua a ser ilegal. É que WB não é um qualquer. Não só é professor doutor, tido como o pai da nossa Constituição (digamos que um dos pais; da nossa Constituição se poderia dizer, sem ofensa ou desprimor, que é filha de quarenta pais, fora passageiros!), como foi convidado pelo próprio presidente da República para fazer uma conferência acerca dos 30 anos da nossa Constituição.

Ora isso quer dizer que a sua opinião tem peso, tem substância, e por isso merece ser tomada em consideração. E ele diz que o AO está ilegalmente preso desde o princípio. Eu e muita gente já sabíamos isso, estava na cara, mas agora ganhou uma dimensão nova, vinda da autoridade de um professor jubilado.

Então a curiosidade é: que vai fazer o presidente da República ao não ter mais dúvidas de que dois órgãos de soberania do nosso país, que afirmamos respeitador da democracia e dos direitos humanos, estão a violar a Constituição da República de forma descarada e continuada? Que vai fazer diante desta vingança indigna de magistrados que deviam ser os faróis da nossa sociedade? Será que vai continuar a ter dúvidas?

Eu sempre disse que o desembargador que mandou fechar o deputado Amadeu na cadeia da Ribeirinha cometeu um crime de prevaricação. Não foi uma acusação à toa. Isso porque, melhor que ninguém, ele sabia que não podia prender um deputado daquela maneira bruta. Porém, cegos pela necessidade de vingança que precisavam exercer sobre um homem a quem tinham permitido humilha-los de forma descarada, não viram que sobre eles recaía a responsabilidade de nos mostrar que no regime democrático, as leis que aprovamos, são valores que uma vez postos em causa desequilibram a sociedade.

  Por exemplo, é admissível que um pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade interposto por 15 deputados desde 02 de Maio esteja ainda pendente de decisão, não obstante a lei delimitar em dias uma decisão dessa natureza, sobretudo por se tratar de um deputado preso? Como aconteceu num caso do célebre processo de reforma agrária, o tribunal constitucional deve estar à espera que o Amadeu seja julgado, para depois declarar a inutilidade superveniente da lide.

Mas se aceitarmos que o presidente da República está interdito de dizer uma palavra que sobre esses abusos que vêm acontecendo no país que ele representa, eleito por voto consciente da maioria dos eleitores nacionais, de que podemos esperar que ele fale? Afinal, que podemos esperar dele? Assim, contra ventos e marés, continuo a insistir que o presidente da República tem que ter uma palavra a dizer sobre os muitos desmandos que se passam no país, é o preço do voto que lhe demos.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 787, de 29 de Setembro de 2022

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